Ia pisando atentamente as pedras da calçada antevendo um jogo da macaca. Repetindo-se mentalmente
- não te atrevas a pisar o risco, não te permitas ser solta, não te ponhas a jeito, Ermelinda, não dês o peito às balas, não coloques a maçã na cabeça como um alvo, não, não, não, não digas sim a nada.
Recusando-se um abandono de si, concentrando-se em pequenos nadas quotidianos para não ter de pensar na decepção com o Fernando; o Fernando preterindo-a por uma tal de Jéssica
- mas que tipo de fulaninha se chama Jéssica?, deve ser uma qualquer atrevida de fio dental e dentes tortos, com muita pele à mostra para distrair as atenções de umas fuças lindas como o sol da noite.
Culpando-se pelos seus simples algodões azul cueca, pela ausência de maquilhagem, por todas as vezes em que não foi ao cabeleireiro, também pelas ocasiões em que
- hoje dói-me a cabeça, Fernando, estou com o período, Fernando, a pornografia é coisa de gente mal resolvida, Fernando, aqui não que alguém pode estar a ver-nos, apaga a luz, fecha a porta, olha os vizinhos.
Pensando que tantas fizera que ele se cansara. Fartara-se da falta de risadas, do seu silêncio recto, da sua tristeza sem nome, da falta de curvas e inexistência de música.
De repente largou a chover. Ergueu os olhos e bátegas grossas cairam-lhe pela face. Os transeuntes corriam a abrigar-se onde podiam. Ermelinda deixou-se ficar. Primeiro uma lágrima reticente e depois logo um rio cara abaixo até um grito profundo de raiva, que se alçou da garganta com toda a propriedade de quem retira um alçapão e dá rédea solta ao desespero. E ali ficou na rua quase deserta, encharcada, à espera do arco íris.
- Quem anda à chuva molha-se
domingo, 5 de novembro de 2017
Provérbio chuvoso
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