Provérbios Provados noutras casas:

sábado, 30 de dezembro de 2023

Provérbio provado rimado - MCCXLII

Não calces antes da cova
Cada ano uma pantufa nova
Não sejas velho mais cedo
Há tempo para teres medo

Não incorpores mistério
Nem leves tudo tão a sério 
Larga a constante exigência 
Que parece prepotência

Vives num stress danado
Com o sobrolho carregado
Em ninguém tens confiança
Isso dá cabo da esperança 

Não penses que é a idade
Que molda a personalidade
Pode dar uma ajudinha
Mas não faz nada sozinha

Terá de ti mesmo partir
Se te quiseres esculpir
Num baixo relevo melhor
Que te destape a dor

Assim de alma aberta
A vida será mais incerta
Mas serás mais verdadeiro
Sem estares de ti prisioneiro

Os meus conselhos aceita
Embora eu não seja perfeita 
Mais fácil é olhar de fora
Não perdes pela demora

Tenho uma lista comprida
Com orientações para a vida 
Mas como qualquer ser humano
É raro cumprir o meu plano 


Provérbio provado rimado - MCCXLI

Deixa que te diga irmão

Não há arte sem solidão

De igual forma a beleza

Só existe irmã da tristeza


Desejamos mais evasões

No meio das multidões

Tememos a rota marcada

E uma vida assegurada 


Transpomos várias fronteiras

Contendo imensas barreiras

Para depois no fim aportar

Ao que ainda não é um lar


Que a casa mais bem mobiliada

Não é a que está enfeitada 

É a que exibe a substância

A isso atribui importância 


Se há muros desalinhados

E alicerces mal encaixados 

É que tudo é uma passagem 

E a vida tão curta viagem


Interioriza um let it be

Que seja mais fácil para ti

Tomando sem desatino

O que se afigura destino


Enquanto quiseres controlar

O que está em cada lugar 

É normal que tu te melindres

Se do teu ego não prescindes


Se o tempo se tornar voraz

Fuma então o cachimbo da paz

Vai com menos sede ao pote

Para não andares num virote 



Provérbio provado rimado - MCCXL

Senti-me feliz e completa

Na nossa noite secreta

Foi de tal forma o prazer

É escusado esconder


A cena foi toda perfeita

Fiquei muito satisfeita

E até faço a denúncia

Que adoro a tua pronúncia 


Queria pegar no telefone

Ou talvez num megafone

E aos quatro ventos gritar

Que me estou a apaixonar 



Provérbio provado rimado - MCCXXXIX

Não é muito o que te exijo 
Por isso é que não te corrijo
E as ofensas vou engolindo
Mas de respeito não prescindo 

Quando vejo que já ultrapassa
E não tem qualquer tipo de graça
Tenho então de botar faladura 
Mesmo que seja má altura

Se não largar esse foguete
E assim continuar um joguete 
Mais cedo ou mais tarde rebento
Sem nenhum discernimento

Não esperes pela gota de água
Que faz estalar tanta mágoa
Não me faças sentir pior
Como se eu fosse inferior 



quarta-feira, 20 de dezembro de 2023

Provérbio provado acautelado

Vai ligeira pelo bosque, minha querida, sempre a direito, sim? Nesse trajecto há muitas distrações: ora um ramo que se desprende vindo atravessar-se-te ao caminho, ora um canto de ave mais sonoro ora demasiado tropical para estas latitudes. Tantas coisas, meu amor, que te podem, te vão!, distrair. 
Eu bem sei, bem sei melhor do que imaginas que sei. Já tive a tua idade, filha, cada novo dia era mesmo novo! Agora é apenas mais um dia no calendário onde é sempre Inverno, Julieta, mas não te confesso estes meus pesares para não te inquietar... Tens muito tempo para acumular tristezas; envelhecer, lá no fundo, é isso, mas para já para ti é segredo: nesta altura só coleccionas surpresas e outros sinónimos de coisas que desabrocham. 
Acabo por ter uma certa inveja dessa leveza, sabes? É por isso que os meus conselhos expressam este misto de dor de cotovelo e preocupação.
Por isso sou esta mãe chata quando te recomendo que não saias dos trilhos previamente desenhados. O bosque esconde muitos perigos. Só nas histórias dos livros um lobo com fome é um lobo mau. Vistas bem as coisas como realmente são as coisas, um lobo com fome é também uma alcateia com fome. Não é só um lobo mau, querida, é uma chusma de canídeos cinzentos esfaimados cujo instinto animal sugere a busca activa de alimento.
Com a idade que agora tens não sei como te explicar que nem sempre a providência é divina. Não sei como te explicar como é chato para mim ser uma mãe chata. Era mais fácil quando tinhas seis anos e te contava a história do Capuchinho Vermelho. Nessa época, era tudo mais fácil porque acreditavas no Pai Natal. 
Agora tens treze anos e todas as treze certezas do mundo. Um dia, daqui a mais treze anos, quando te doerem as feridas na pele e na alma, perceberás que também os humanos se movimentam com esse mesmo instinto de sobrevivência animal. E a quem te disser que A necessidade aguça o engenho acrescentarás também que 


- A necessidade faz o lobo saltar 

sexta-feira, 8 de dezembro de 2023

Provérbio provado cantado

Foi a qualidade rara da voz que me fez render àquela figura que no palco cantava. Uma estranheza inicial que se foi entranhando por camadas num crescendo. Porque nunca tinha ouvido nada semelhante, fiquei numa hesitação de gostar ou não. Os seus graves eram muito graves e os agudos tão agudos que me fizeram repensar que realmente nunca tinha ouvido nada semelhante. Adorei a sensação de frescura dessa minha constatação. Aquela voz no palco embriagava-me e eu adorava-a.
Uma vez aceite no ouvido e no coração, deixei de reparar no seu penteado - que de tão estruturado mais parecia uma peruca - e nas suas originais e cenografadas vestes. Aceitei aquele trinado especial de pássaro com tal intensidade que, depois, muito depois do concerto, o disco dela continuava a rodar e a rodar no seu lugar em cima do aparador. Tal como no palco.

E quando tinha visitas na sala fazia um momento de suspense enquanto prometia:
- Têm mesmo de ouvir esta cantora. Irão decerto agradecer-me. Não me canso de repetir que nunca ouvi nada semelhante. As palavras são néctar na sua voz, a melodia iriça-me todos os pelos do braço, a forma como todo o corpo, não apenas a garganta, se entrega a cada música... Em suma, é um rouxinol tão harmonioso, canta de um modo tão agradável que merecia um Nobel.
A maioria dos presentes aquiescia com os braços alapados nos cadeirões, enquanto o disco girava, e batia o pé conforme o seu ritmo mais do que o da canção. Chegavam a ensaiar uns passos de dança envergonhados. Perguntavam-me o nome do disco, onde se podia adquirir e que concertos daria aquela autêntica ave canora.
Contudo, havia também quem - embora em em muito menor número - não achasse a cantora nada do outro mundo, quem desmerecesse a minha adorada voz, insinuando que eu vendia tão bem aquele peixe que até parecia que tinha comissão nas vendas. Não deixava, no entanto, de instalar a dúvida naqueles ouvidos ali reunidos.


- Por sete que sabem cantar há um que não sabe falar 

Provérbio provado rimado -MCCXXXVIII

O Rui é daqueles feios

Que mais parecem um bode

Por isso tem tantos rodeios

Não sai de cima nem pode


A falta de auto-estima

Nota-se bem à distância 

Por isso o Rui se lastima

Que não lhe dão importância 


Enquanto só se queixar

Da sua falta de encanto

A coisa vai descambar

E fica lavado num pranto



Provérbio provado rimado - MCCXXXVII

Mais alto e mais além

Pede a mão do poeta

Mesmo sem ter um vintém

Pra mandar cantar o cegueta


No fundo é pobre coitado

Come as cascas do tremoço

E só não anda definhado

Porque a mãe lhe dá o almoço


As roupas que ele veste

Foi preço que negociou

Numa feira do Oeste

Plo menos não as roubou


Tem sempre aquele ar

Tão único e descuidado

As meias não andam em par

E está podre o seu calçado


O dedo grande do pé

Espreita o sol lá de fora

E cheira tanto a chulé

Que os demais vão embora


Tem pinta de cientista

Detendo um canudo falso

Ou pode parecer um turista

Daqueles de pé-descalço



Provérbio provado rimado - MCCXXXVI

Eu escrevo de alma na mão

Não uso toalha ou roupão 

O meu verso está ao léu

Não faço grande escarcéu 


Mas eu vejo outros poetas

Escrevendo só duas tretas

E são logo muito louvados 

Pelos demais considerados


Eu não quero ser invejosa

Prefiro ser mais talentosa 

E não ter o ar sobranceiro

Do aprendiz de feiticeiro



Provérbio provado rimado - MCCXXXV

Insistência e persistência

São a melhor ciência 

A primeira é exequível 

A outra faz o impossível



Provérbio provado num verso branco - CXXXV

NEM SEMPRE NEM NUNCA


Nunca mais dirás uma palavra começada por éne
Sempre é a palavra com ésse que também deves evitar
Cala ainda aquele arrependimento com dê que te faz detrito 
A constante desculpa com que evidencias a tua culpa 

Sempre deve ser nunca e nunca ser assim sempre 
Palavras que matam a oportunidade de para sempre existir
Dizimam todas as coisas antes do seu acontecimento 
A boca como veículo e vítima desse massacre 

Sempre é em todo o caso e nunca em nenhum momento 
Isto te afianço com todos os éfes e érres 
Que é a minha forma de dar ferroadas e de ripostar 
De estar sempre a postos sem nunca o garantir 


Provérbio provado rimado - MCCXXXIV

Hoje foi tão difícil o dia

Começou desde cedo a abrir

Quando a colega com azia

Começou a tentar-me oprimir


Mandei-lhe dois berros ou três

Logo a discussão estalou

Porque a gaja na sua vez

Também assim não se calou 


E a noite cheinha de mágoa

Apesar de dela não ser fã

Ainda tenho a cabeça em água

Mas só até ser de manhã



Provérbio provado rimado - MCCXXXIII

Enquanto houver língua e dedo

Nada ao João mete medo

Porque com cuspe e jeito

Nenhum buraco é estreito


Por isso ele é gabarola

Parece maluco da tola

Vaidoso mas porém vai treze

Desde que ninguém o despreze



Provérbio provado rimado - MCCXXXII

Tarefa que não dá em nada

É bater punhetas a grilos

Pode ser descabimentada

Seja por chefes ou pupilos


Há outra tarefa semelhante

Que é no bolso jogar bilhar

E até pode ser humilhante

Não ter mais onde o jogar


É pois tarefa solitária

Esse jogo de um para um

E também assaz sedentária

Mais valia um copo de rum



quarta-feira, 6 de dezembro de 2023

Provérbio provado calçado

Sobranceiro a um largo maior com um pelourinho, que era a principal praça da aldeia, o adro, a bem dizer, só tinha três edifícios: a bonita igreja que lhe dava o nome - e dera à terra um longínquo foral -, o prédio bem cuidado dos correios e a casa do Sr. Abílio que, vistosa e pintada de fresco, se impunha na paisagem.
Quando as três filhas já estavam espigadotas, o Sr. Abílio e a atenciosa D. Amélia com quem trocara esponsais haviam inaugurado a mais central casa nova.
No enorme rés-do-chão havia um quintal com algumas árvores de fruto, uma cozinha de fora e uma capoeira desafogada, num aproveitamento bem pensado do espaço por baixo das escadas que levavam ao segundo andar. Ainda nesse piso térreo, ficava a loja com uma porta que dava directamente para a rua e em cujo tapete se liam as boas-vindas. No rés-do-chão também se localizava a grande garagem que guardava a velha carrinha Ford cor-de-laranja onde cabiam centenas de caixas de sapatos que percorriam as feiras ambulantes. No segundo andar, mais reservado à família, afadigavam-se D. Amélia e as suas belas filhas nas suas rotinas costumeiras.

Assim se descreveu a casa tal qual Ramalhete para agora enfocar na sapataria. 
Quem chegava ao adro não descortinava ali qualquer negócio. Não havia um letreiro e, às vezes, até era preciso tocar à campainha. E, se o tapete era retirado, era um indicador de que a família estava para as feiras.
Um negócio discreto, este do Sr. Abílio, possuindo contudo o monopólio das redondezas, já que não havia qualquer concorrência num raio de quinze quilómetros quadrados.
A loja era pequena e tinha um pequeno armazém contíguo onde se alinhavam sapatos, botas, chinelos e sandálias, agrupados por modelos. As biqueiras mais largas ficavam por baixo, os números menores em cima. A outra porta interior levava à já mencionada garagem onde, num canto que destoava pela desarrumação, ficava a oficina de sapateiro do Sr. Abílio. Ali mesmo, em cima da compra, colocava os sapatos em formas que os alargavam para dispensarem a calçadeira.
A freguesia da sapataria era muito homogénea na frequência e nas necessidades. A grande enchente semanal dava-se antes da missa das onze, sendo essa a razão para o Sr. Abílio não folgar ao domingo. 
Os clientes, vindos dos casais adjacentes, procuravam calçado para um de dois cenários: as botas de agricultor para trabalhar durante a semana ou os sapatos de domingo. As botas subiam pelo tornozelo e tinham atacadores e sola grossa de borracha, sendo abundantemente ensebadas às primeiras chuvas. Já os sapatos, enfim, eram encolhidos mais pelo desenho do que pelo conforto. Podiam até apertar um pouco os calos ou fazer bolhas no calcanhar, isso fazia parte da sua condição de sapatos de um dia só. Podiam até durar vários anos guardados numa caixa envoltos em papel vegetal.
Aos domingos, as casaleiras entravam porta adentro com um par de crianças ranhosas em cada mão e rogavam:
- Ó Sr. Abílio, arrange-me aí uns sapatecos para os meus garotecos!
Antecipando o momento de gozo dominical em que, pelas frestas dos estores no segundo andar, topavam os basbaques que acorriam ao toque dos sinos para a missa, as três filhas casadoiras recebiam por vezes as primas da capital. Todas as cinco desciam então para longas brincadeiras na loja.
As clientes, afogueadas e atrasadas, já ia a missa a caminho da homília, ficavam verdadeiramente surpreendidas ao ver as meninas da cidade grande a experimentarem calçar botas de agricultor.


- Dá Deus botas a quem já tem sapatos 

terça-feira, 5 de dezembro de 2023

Provérbio provado rimado - MCCXXXI

Meu querido João Ratão
Que nesta rua te passeias
Não alimentes ideias
Duma futura união

Porque esta Carochinha
É especial de corrida
Não tem controle na vida
Perfere estragar-se sozinha

E lá no fundo tem medo
Da entrega desenfreada
Às vezes fica calada
Como se fosse um segredo 



Provérbio provado rimado - MCCXXX

O Alexandre é manhoso
E também é um tipo velhaco
Para além de que é invejoso
É o seu principal ponto fraco

Nota-se que todo se eriça
Quando vê o sucesso alheio
Começa a ferver de cobiça
E não é por nenhum devaneio

A inveja está-lhe nas veias
E também as artérias percorre
Com a astúcia paredes meias
A bom samaritano comcorre

Porque ele nunca tem inveja
De defuntos e de apartados
O inferno que ele deseja
É a vizinhos e chegados


Provérbio provado dissimulado - II

Opá, ó Gisela, não é exagero, não posso mesmo com aquela gaja, a fingida da Anita! Nem que se pintasse toda de ouro exibindo uma tabuleta de gratuitidade, não a queria à minha beira nem dada! Mas tu já viste bem a minha vida, amiga? Tenho de levar com ela oito horas por dia, que sorte marreca.
O que mais me irrita é aquele ar de sonsa, de crente do cu quente, de santinha caridosa do pau oco, apresentando-se sempre como defensora dos oprimidos... O engraçado de toda aquela personalidade, completamente fabricada e engendrada pelo ego, é que não deseja realmente socorrer os aflitos: suspeito que o que quer é ver-se elevada num patamar de suprema pessoa bondosa, enquanto cá em baixo a mortal e pecadora claque aplaude. Deve ser por isso que publicita com tanta abundância as missas dominicais e as instituições de solidariedade que frequenta.
Mas o mais engraçado mesmo de tudo, Gisela, é que a Anita às vezes parece mesmo minha amiga, tu acreditas? E não é que ela é tão boa actriz que eu chego a acreditar? Claro que é só até me fazer a próxima! Destila então um tal fel que sinto que é nesses momentos que se revela a verdadeira Anita cruel. 
Mais te afianço, minha querida, ninguém a leva presa com tal paleio enganador, mesmo as pessoas mais argutas. Tu mesma, aqui que me ouves, Gisela, embarcarias na sua cantiga em três tempos, tão familiar e disponível se demonstra. Nunca percebi o que é ela ganha, com franqueza... Os menos simples são precisamente os que tentam parecê-lo mais vezes. A simplicidade artificial é a pior de todas as coisas artificiais, não concordas comigo?
Felizmente, tenho-te a ti, em boa hora cruzaste o meu caminho, Gisela! É verdade que por vezes és bruta como as casas, não medes as palavras com a devida régua antes de falares e chegas a ser demasiado sincera, se é que existe sinceridade em demasia. Mas é por essa exacta razão que te aprecio tanto, amiga, vales por trinta Anitas! Franca que dói, sem filtros, desbocada. Claro que o que dizemos é uma coisa e o que somos é outra... Mas a tua boca mostra de que é feito o teu coração.
Eu sei, Gisela, eu bem sei, não me devia importar com tal fulana, era deixá-la enganar todo o mundo em redor. A máscara haveria de cair porque - disto estou certa como um facto! - ninguém consegue estar constantemente a representar, ninguém disfarça os maus fígados numa eterna e bonita moldura hepática.
Um dia destes, quando a Anita menos esperar, virá um acontecimento, que até passaria despercebido não fora o acumular de enganos, a manta de retalhos de mentiras, digo eu amiga, um acontecimento assim inócuo que provocará a derrocada daquele edifício colado a cuspo. Todos verão então a Anita como eu a vejo.

- A verdade demora, mas chega sempre sem avisar 

Provérbio provado rimado - MCCXXIX

 

A Nádia vive receosa

Que alguém lhe roube o lugar

Por isso está desejosa

De ver esse alguém tropeçar


Enquanto vem volta e tropeça

À parte as tarefas urgem

Só faz filmes na sua cabeça

Cheia de ressaibo e ferrugem


Nem é preciso que preguem

À Nádia uma patifaria

Basta que apenas escorreguem

Para logo ficar com azia


Uma vez que vai insistindo

Sempre aos outros retaliar

O mal que ela faz sorrindo

Há-de pagar a chorar



domingo, 3 de dezembro de 2023

Provérbio provado desvalorizado

Já haviam mencionado o caso inúmeras vezes ao presidente da Junta. Ele que sim, que sim, que quando a verba fosse cabimentada, só que afinal não, não se percebia do que estava à espera. Talvez esperasse mais alguns feridos, eventualmente graves, condenados a uma eterna cadeira de rodas, quiçá - e aqui seja o diabo cego, surdo e mudo - uma vítima mortal que fizesse dobrar os sinos e enchesse o cemitério camarário de vivos apreensivos.

Pois se até tinha virado o bico ao prego nas últimas eleições, aliando-se aos seus antigos opositores, quando as sondagens não lhe foram favoráveis! Se nessa altura movera mundos e fundos a fim de manter o poleiro, porque atrasava agora a construção de uma rotunda com semáforos devidamente iluminados ou, quando muito, um conjunto de lombas que fizesse os carros abrandar?

Como estava é que não podia continuar: aquele cruzamento era tão perigoso que engordava as estatísticas do atropelamento local, desafiando a lei das probabilidades. As mães, receosas, não permitiam que os filhos fossem a pé para a escola. As bicicletas contornavam o problema e iam à volta pela Tapada. As velhotas que viviam perto persignavam-se ao menor chiar de pneus. Todos lá na vila viviam angustiados antecipando o despiste iminente.

Só o Zé Mau não se ralava. Com o olhar vidrado posto muito lá adiante, calcorreava alamedas e estradas, só parando para aliviar a bexiga atrás de alguma moita. Diariamente, percorria quilómetros a fio com as suas pernitas delgadas. Não é que o Zé Mau fosse realmente mau: era tão só o doido oficial da terra, ninguém sabia muito bem quem lhe botara tal alcunha.

Numa tarde de Outubro, uma daquelas tardes de precipitação miudinha que tornam escorregadios os pavimentos, quando andava o Zé Mau nas suas deambulações com a cara salpicada daquela chuva molha-parvos, veio um carro travar-lhe aos pés numa chinfrineira de impor respeito. Felizmente não lhe beliscou nem um centímetro de pele. A Dona Clotilde, cuja casa era paredes meias ao cruzamento, assomou de imediato ao postigo num misto de reza e aflição:

- Ó Zé, o qué c'houve?

- É uma hortaliça.


- Nem tudo o que a gente ouve, houve 

Provérbio provado num verso branco - CXXXIV

Avançamos pela vida sem rasgo nem deslumbre

No lugar do morto em piloto automático

Atravessando os instantes em câmera lenta

Cada vez mais ignorantes a cada jornada

Esquecidos de que o tempo é um barco veloz

Cujo instinto é engolir a espuma das ondas

Meio cego imprevidente e impaciente

Esse amor-próprio é próprio do tempo


Pasmados de céu e do vaguear das nuvens

Acostumados à medida do relógio

Distorcemos a compreensão temporal

Numa realidade composta de matéria

Onde o que vemos e tocamos se faz lei

Sendo assim o tempo a dimensão da mente


Mas tantas vezes o ontem foi igual há um ano

E o ano passado tal como há dez e há vinte

Quando enfim despertamos já passou 

Um intervalo em que acordados adormecemos


Não o futuro não se compadece da imobilidade

O acaso é um caso breve e talvez raro

E a vida de tão fugaz torna-se quase gigante

O dia de amanhã só nos pertence amanhã

O dia de amanhã ainda ninguém viu



Provérbio provado rimado - MCCXXVIII

Com mais um Natal à porta

Não saí da cepa torta

Os presentes quis comprar

E o subsídio sem esticar


Este ano já promete

Novamente se repete

Só que depois no final

Não há presente ideal


Ou já tinha ou vai trocar

Sem intenção considerar

Não foi decisão esperta

A escolha de cada oferta


O melhor da situação

É a família em união

Porque mais que receber

É podermos conviver


O espírito natalício

À partilha é propício

E os Natais de criança

Ficam sempre na lembrança


Como ver na televisão

O Música no coração

Faz parte desse programa

Antes de ir deitar na cama


O bacalhau e o borrego

Tiram ao estômago sossego 

E comer bombons com fúria

Demonstra alguma incúria


Depois de tanto enfardar

Resta apenas constatar

Com um semblante tão triste

Que o Pai Natal não existe


Se crês que estou a mentir

Vais tu mesmo descobrir

Que não adianta afinal

Acreditar no Pai Natal



Provérbio provado rimado - MCCXXVII

Noutro tempo a fidalguia

Era muito considerada

Detinha uma freguesia

Por muros bem rodeada


Mas os costumes em queda

Cada classe confundiram

E não há quem interceda

Para que mais interfiram


Que os fidalgos já não são

Pessoas muito decentes

Têm de aço o coração

E moedas entre os dentes


Terminou pois a tutela

Ninguém quer ser aprendiz

Fidalgos de meia-tigela

Trazem honra no nariz