Provérbios Provados noutras casas:

sábado, 30 de dezembro de 2023

Provérbio provado rimado - MCCXLII

Não calces antes da cova
Cada ano uma pantufa nova
Não sejas velho mais cedo
Há tempo para teres medo

Não incorpores mistério
Nem leves tudo tão a sério 
Larga a constante exigência 
Que parece prepotência

Vives num stress danado
Com o sobrolho carregado
Em ninguém tens confiança
Isso dá cabo da esperança 

Não penses que é a idade
Que molda a personalidade
Pode dar uma ajudinha
Mas não faz nada sozinha

Terá de ti mesmo partir
Se te quiseres esculpir
Num baixo relevo melhor
Que te destape a dor

Assim de alma aberta
A vida será mais incerta
Mas serás mais verdadeiro
Sem estares de ti prisioneiro

Os meus conselhos aceita
Embora eu não seja perfeita 
Mais fácil é olhar de fora
Não perdes pela demora

Tenho uma lista comprida
Com orientações para a vida 
Mas como qualquer ser humano
É raro cumprir o meu plano 


Provérbio provado rimado - MCCXLI

Deixa que te diga irmão

Não há arte sem solidão

De igual forma a beleza

Só existe irmã da tristeza


Desejamos mais evasões

No meio das multidões

Tememos a rota marcada

E uma vida assegurada 


Transpomos várias fronteiras

Contendo imensas barreiras

Para depois no fim aportar

Ao que ainda não é um lar


Que a casa mais bem mobiliada

Não é a que está enfeitada 

É a que exibe a substância

A isso atribui importância 


Se há muros desalinhados

E alicerces mal encaixados 

É que tudo é uma passagem 

E a vida tão curta viagem


Interioriza um let it be

Que seja mais fácil para ti

Tomando sem desatino

O que se afigura destino


Enquanto quiseres controlar

O que está em cada lugar 

É normal que tu te melindres

Se do teu ego não prescindes


Se o tempo se tornar voraz

Fuma então o cachimbo da paz

Vai com menos sede ao pote

Para não andares num virote 



Provérbio provado rimado - MCCXL

Senti-me feliz e completa

Na nossa noite secreta

Foi de tal forma o prazer

É escusado esconder


A cena foi toda perfeita

Fiquei muito satisfeita

E até faço a denúncia

Que adoro a tua pronúncia 


Queria pegar no telefone

Ou talvez num megafone

E aos quatro ventos gritar

Que me estou a apaixonar 



Provérbio provado rimado - MCCXXXIX

Não é muito o que te exijo 
Por isso é que não te corrijo
E as ofensas vou engolindo
Mas de respeito não prescindo 

Quando vejo que já ultrapassa
E não tem qualquer tipo de graça
Tenho então de botar faladura 
Mesmo que seja má altura

Se não largar esse foguete
E assim continuar um joguete 
Mais cedo ou mais tarde rebento
Sem nenhum discernimento

Não esperes pela gota de água
Que faz estalar tanta mágoa
Não me faças sentir pior
Como se eu fosse inferior 



quarta-feira, 20 de dezembro de 2023

Provérbio provado acautelado

Vai ligeira pelo bosque, minha querida, sempre a direito, sim? Nesse trajecto há muitas distrações: ora um ramo que se desprende vindo atravessar-se-te ao caminho, ora um canto de ave mais sonoro ora demasiado tropical para estas latitudes. Tantas coisas, meu amor, que te podem, te vão!, distrair. 
Eu bem sei, bem sei melhor do que imaginas que sei. Já tive a tua idade, filha, cada novo dia era mesmo novo! Agora é apenas mais um dia no calendário onde é sempre Inverno, Julieta, mas não te confesso estes meus pesares para não te inquietar... Tens muito tempo para acumular tristezas; envelhecer, lá no fundo, é isso, mas para já para ti é segredo: nesta altura só coleccionas surpresas e outros sinónimos de coisas que desabrocham. 
Acabo por ter uma certa inveja dessa leveza, sabes? É por isso que os meus conselhos expressam este misto de dor de cotovelo e preocupação.
Por isso sou esta mãe chata quando te recomendo que não saias dos trilhos previamente desenhados. O bosque esconde muitos perigos. Só nas histórias dos livros um lobo com fome é um lobo mau. Vistas bem as coisas como realmente são as coisas, um lobo com fome é também uma alcateia com fome. Não é só um lobo mau, querida, é uma chusma de canídeos cinzentos esfaimados cujo instinto animal sugere a busca activa de alimento.
Com a idade que agora tens não sei como te explicar que nem sempre a providência é divina. Não sei como te explicar como é chato para mim ser uma mãe chata. Era mais fácil quando tinhas seis anos e te contava a história do Capuchinho Vermelho. Nessa época, era tudo mais fácil porque acreditavas no Pai Natal. 
Agora tens treze anos e todas as treze certezas do mundo. Um dia, daqui a mais treze anos, quando te doerem as feridas na pele e na alma, perceberás que também os humanos se movimentam com esse mesmo instinto de sobrevivência animal. E a quem te disser que A necessidade aguça o engenho acrescentarás também que 


- A necessidade faz o lobo saltar 

sexta-feira, 8 de dezembro de 2023

Provérbio provado cantado

Foi a qualidade rara da voz que me fez render àquela figura que no palco cantava. Uma estranheza inicial que se foi entranhando por camadas num crescendo. Porque nunca tinha ouvido nada semelhante, fiquei numa hesitação de gostar ou não. Os seus graves eram muito graves e os agudos tão agudos que me fizeram repensar que realmente nunca tinha ouvido nada semelhante. Adorei a sensação de frescura dessa minha constatação. Aquela voz no palco embriagava-me e eu adorava-a.
Uma vez aceite no ouvido e no coração, deixei de reparar no seu penteado - que de tão estruturado mais parecia uma peruca - e nas suas originais e cenografadas vestes. Aceitei aquele trinado especial de pássaro com tal intensidade que, depois, muito depois do concerto, o disco dela continuava a rodar e a rodar no seu lugar em cima do aparador. Tal como no palco.

E quando tinha visitas na sala fazia um momento de suspense enquanto prometia:
- Têm mesmo de ouvir esta cantora. Irão decerto agradecer-me. Não me canso de repetir que nunca ouvi nada semelhante. As palavras são néctar na sua voz, a melodia iriça-me todos os pelos do braço, a forma como todo o corpo, não apenas a garganta, se entrega a cada música... Em suma, é um rouxinol tão harmonioso, canta de um modo tão agradável que merecia um Nobel.
A maioria dos presentes aquiescia com os braços alapados nos cadeirões, enquanto o disco girava, e batia o pé conforme o seu ritmo mais do que o da canção. Chegavam a ensaiar uns passos de dança envergonhados. Perguntavam-me o nome do disco, onde se podia adquirir e que concertos daria aquela autêntica ave canora.
Contudo, havia também quem - embora em em muito menor número - não achasse a cantora nada do outro mundo, quem desmerecesse a minha adorada voz, insinuando que eu vendia tão bem aquele peixe que até parecia que tinha comissão nas vendas. Não deixava, no entanto, de instalar a dúvida naqueles ouvidos ali reunidos.


- Por sete que sabem cantar há um que não sabe falar 

Provérbio provado rimado -MCCXXXVIII

O Rui é daqueles feios

Que mais parecem um bode

Por isso tem tantos rodeios

Não sai de cima nem pode


A falta de auto-estima

Nota-se bem à distância 

Por isso o Rui se lastima

Que não lhe dão importância 


Enquanto só se queixar

Da sua falta de encanto

A coisa vai descambar

E fica lavado num pranto



Provérbio provado rimado - MCCXXXVII

Mais alto e mais além

Pede a mão do poeta

Mesmo sem ter um vintém

Pra mandar cantar o cegueta


No fundo é pobre coitado

Come as cascas do tremoço

E só não anda definhado

Porque a mãe lhe dá o almoço


As roupas que ele veste

Foi preço que negociou

Numa feira do Oeste

Plo menos não as roubou


Tem sempre aquele ar

Tão único e descuidado

As meias não andam em par

E está podre o seu calçado


O dedo grande do pé

Espreita o sol lá de fora

E cheira tanto a chulé

Que os demais vão embora


Tem pinta de cientista

Detendo um canudo falso

Ou pode parecer um turista

Daqueles de pé-descalço



Provérbio provado rimado - MCCXXXVI

Eu escrevo de alma na mão

Não uso toalha ou roupão 

O meu verso está ao léu

Não faço grande escarcéu 


Mas eu vejo outros poetas

Escrevendo só duas tretas

E são logo muito louvados 

Pelos demais considerados


Eu não quero ser invejosa

Prefiro ser mais talentosa 

E não ter o ar sobranceiro

Do aprendiz de feiticeiro



Provérbio provado rimado - MCCXXXV

Insistência e persistência

São a melhor ciência 

A primeira é exequível 

A outra faz o impossível



Provérbio provado num verso branco - CXXXV

NEM SEMPRE NEM NUNCA


Nunca mais dirás uma palavra começada por éne
Sempre é a palavra com ésse que também deves evitar
Cala ainda aquele arrependimento com dê que te faz detrito 
A constante desculpa com que evidencias a tua culpa 

Sempre deve ser nunca e nunca ser assim sempre 
Palavras que matam a oportunidade de para sempre existir
Dizimam todas as coisas antes do seu acontecimento 
A boca como veículo e vítima desse massacre 

Sempre é em todo o caso e nunca em nenhum momento 
Isto te afianço com todos os éfes e érres 
Que é a minha forma de dar ferroadas e de ripostar 
De estar sempre a postos sem nunca o garantir 


Provérbio provado rimado - MCCXXXIV

Hoje foi tão difícil o dia

Começou desde cedo a abrir

Quando a colega com azia

Começou a tentar-me oprimir


Mandei-lhe dois berros ou três

Logo a discussão estalou

Porque a gaja na sua vez

Também assim não se calou 


E a noite cheinha de mágoa

Apesar de dela não ser fã

Ainda tenho a cabeça em água

Mas só até ser de manhã



Provérbio provado rimado - MCCXXXIII

Enquanto houver língua e dedo

Nada ao João mete medo

Porque com cuspe e jeito

Nenhum buraco é estreito


Por isso ele é gabarola

Parece maluco da tola

Vaidoso mas porém vai treze

Desde que ninguém o despreze



Provérbio provado rimado - MCCXXXII

Tarefa que não dá em nada

É bater punhetas a grilos

Pode ser descabimentada

Seja por chefes ou pupilos


Há outra tarefa semelhante

Que é no bolso jogar bilhar

E até pode ser humilhante

Não ter mais onde o jogar


É pois tarefa solitária

Esse jogo de um para um

E também assaz sedentária

Mais valia um copo de rum



quarta-feira, 6 de dezembro de 2023

Provérbio provado calçado

Sobranceiro a um largo maior com um pelourinho, que era a principal praça da aldeia, o adro, a bem dizer, só tinha três edifícios: a bonita igreja que lhe dava o nome - e dera à terra um longínquo foral -, o prédio bem cuidado dos correios e a casa do Sr. Abílio que, vistosa e pintada de fresco, se impunha na paisagem.
Quando as três filhas já estavam espigadotas, o Sr. Abílio e a atenciosa D. Amélia com quem trocara esponsais haviam inaugurado a mais central casa nova.
No enorme rés-do-chão havia um quintal com algumas árvores de fruto, uma cozinha de fora e uma capoeira desafogada, num aproveitamento bem pensado do espaço por baixo das escadas que levavam ao segundo andar. Ainda nesse piso térreo, ficava a loja com uma porta que dava directamente para a rua e em cujo tapete se liam as boas-vindas. No rés-do-chão também se localizava a grande garagem que guardava a velha carrinha Ford cor-de-laranja onde cabiam centenas de caixas de sapatos que percorriam as feiras ambulantes. No segundo andar, mais reservado à família, afadigavam-se D. Amélia e as suas belas filhas nas suas rotinas costumeiras.

Assim se descreveu a casa tal qual Ramalhete para agora enfocar na sapataria. 
Quem chegava ao adro não descortinava ali qualquer negócio. Não havia um letreiro e, às vezes, até era preciso tocar à campainha. E, se o tapete era retirado, era um indicador de que a família estava para as feiras.
Um negócio discreto, este do Sr. Abílio, possuindo contudo o monopólio das redondezas, já que não havia qualquer concorrência num raio de quinze quilómetros quadrados.
A loja era pequena e tinha um pequeno armazém contíguo onde se alinhavam sapatos, botas, chinelos e sandálias, agrupados por modelos. As biqueiras mais largas ficavam por baixo, os números menores em cima. A outra porta interior levava à já mencionada garagem onde, num canto que destoava pela desarrumação, ficava a oficina de sapateiro do Sr. Abílio. Ali mesmo, em cima da compra, colocava os sapatos em formas que os alargavam para dispensarem a calçadeira.
A freguesia da sapataria era muito homogénea na frequência e nas necessidades. A grande enchente semanal dava-se antes da missa das onze, sendo essa a razão para o Sr. Abílio não folgar ao domingo. 
Os clientes, vindos dos casais adjacentes, procuravam calçado para um de dois cenários: as botas de agricultor para trabalhar durante a semana ou os sapatos de domingo. As botas subiam pelo tornozelo e tinham atacadores e sola grossa de borracha, sendo abundantemente ensebadas às primeiras chuvas. Já os sapatos, enfim, eram encolhidos mais pelo desenho do que pelo conforto. Podiam até apertar um pouco os calos ou fazer bolhas no calcanhar, isso fazia parte da sua condição de sapatos de um dia só. Podiam até durar vários anos guardados numa caixa envoltos em papel vegetal.
Aos domingos, as casaleiras entravam porta adentro com um par de crianças ranhosas em cada mão e rogavam:
- Ó Sr. Abílio, arrange-me aí uns sapatecos para os meus garotecos!
Antecipando o momento de gozo dominical em que, pelas frestas dos estores no segundo andar, topavam os basbaques que acorriam ao toque dos sinos para a missa, as três filhas casadoiras recebiam por vezes as primas da capital. Todas as cinco desciam então para longas brincadeiras na loja.
As clientes, afogueadas e atrasadas, já ia a missa a caminho da homília, ficavam verdadeiramente surpreendidas ao ver as meninas da cidade grande a experimentarem calçar botas de agricultor.


- Dá Deus botas a quem já tem sapatos 

terça-feira, 5 de dezembro de 2023

Provérbio provado rimado - MCCXXXI

Meu querido João Ratão
Que nesta rua te passeias
Não alimentes ideias
Duma futura união

Porque esta Carochinha
É especial de corrida
Não tem controle na vida
Perfere estragar-se sozinha

E lá no fundo tem medo
Da entrega desenfreada
Às vezes fica calada
Como se fosse um segredo 



Provérbio provado rimado - MCCXXX

O Alexandre é manhoso
E também é um tipo velhaco
Para além de que é invejoso
É o seu principal ponto fraco

Nota-se que todo se eriça
Quando vê o sucesso alheio
Começa a ferver de cobiça
E não é por nenhum devaneio

A inveja está-lhe nas veias
E também as artérias percorre
Com a astúcia paredes meias
A bom samaritano comcorre

Porque ele nunca tem inveja
De defuntos e de apartados
O inferno que ele deseja
É a vizinhos e chegados


Provérbio provado dissimulado - II

Opá, ó Gisela, não é exagero, não posso mesmo com aquela gaja, a fingida da Anita! Nem que se pintasse toda de ouro exibindo uma tabuleta de gratuitidade, não a queria à minha beira nem dada! Mas tu já viste bem a minha vida, amiga? Tenho de levar com ela oito horas por dia, que sorte marreca.
O que mais me irrita é aquele ar de sonsa, de crente do cu quente, de santinha caridosa do pau oco, apresentando-se sempre como defensora dos oprimidos... O engraçado de toda aquela personalidade, completamente fabricada e engendrada pelo ego, é que não deseja realmente socorrer os aflitos: suspeito que o que quer é ver-se elevada num patamar de suprema pessoa bondosa, enquanto cá em baixo a mortal e pecadora claque aplaude. Deve ser por isso que publicita com tanta abundância as missas dominicais e as instituições de solidariedade que frequenta.
Mas o mais engraçado mesmo de tudo, Gisela, é que a Anita às vezes parece mesmo minha amiga, tu acreditas? E não é que ela é tão boa actriz que eu chego a acreditar? Claro que é só até me fazer a próxima! Destila então um tal fel que sinto que é nesses momentos que se revela a verdadeira Anita cruel. 
Mais te afianço, minha querida, ninguém a leva presa com tal paleio enganador, mesmo as pessoas mais argutas. Tu mesma, aqui que me ouves, Gisela, embarcarias na sua cantiga em três tempos, tão familiar e disponível se demonstra. Nunca percebi o que é ela ganha, com franqueza... Os menos simples são precisamente os que tentam parecê-lo mais vezes. A simplicidade artificial é a pior de todas as coisas artificiais, não concordas comigo?
Felizmente, tenho-te a ti, em boa hora cruzaste o meu caminho, Gisela! É verdade que por vezes és bruta como as casas, não medes as palavras com a devida régua antes de falares e chegas a ser demasiado sincera, se é que existe sinceridade em demasia. Mas é por essa exacta razão que te aprecio tanto, amiga, vales por trinta Anitas! Franca que dói, sem filtros, desbocada. Claro que o que dizemos é uma coisa e o que somos é outra... Mas a tua boca mostra de que é feito o teu coração.
Eu sei, Gisela, eu bem sei, não me devia importar com tal fulana, era deixá-la enganar todo o mundo em redor. A máscara haveria de cair porque - disto estou certa como um facto! - ninguém consegue estar constantemente a representar, ninguém disfarça os maus fígados numa eterna e bonita moldura hepática.
Um dia destes, quando a Anita menos esperar, virá um acontecimento, que até passaria despercebido não fora o acumular de enganos, a manta de retalhos de mentiras, digo eu amiga, um acontecimento assim inócuo que provocará a derrocada daquele edifício colado a cuspo. Todos verão então a Anita como eu a vejo.

- A verdade demora, mas chega sempre sem avisar 

Provérbio provado rimado - MCCXXIX

 

A Nádia vive receosa

Que alguém lhe roube o lugar

Por isso está desejosa

De ver esse alguém tropeçar


Enquanto vem volta e tropeça

À parte as tarefas urgem

Só faz filmes na sua cabeça

Cheia de ressaibo e ferrugem


Nem é preciso que preguem

À Nádia uma patifaria

Basta que apenas escorreguem

Para logo ficar com azia


Uma vez que vai insistindo

Sempre aos outros retaliar

O mal que ela faz sorrindo

Há-de pagar a chorar



domingo, 3 de dezembro de 2023

Provérbio provado desvalorizado

Já haviam mencionado o caso inúmeras vezes ao presidente da Junta. Ele que sim, que sim, que quando a verba fosse cabimentada, só que afinal não, não se percebia do que estava à espera. Talvez esperasse mais alguns feridos, eventualmente graves, condenados a uma eterna cadeira de rodas, quiçá - e aqui seja o diabo cego, surdo e mudo - uma vítima mortal que fizesse dobrar os sinos e enchesse o cemitério camarário de vivos apreensivos.

Pois se até tinha virado o bico ao prego nas últimas eleições, aliando-se aos seus antigos opositores, quando as sondagens não lhe foram favoráveis! Se nessa altura movera mundos e fundos a fim de manter o poleiro, porque atrasava agora a construção de uma rotunda com semáforos devidamente iluminados ou, quando muito, um conjunto de lombas que fizesse os carros abrandar?

Como estava é que não podia continuar: aquele cruzamento era tão perigoso que engordava as estatísticas do atropelamento local, desafiando a lei das probabilidades. As mães, receosas, não permitiam que os filhos fossem a pé para a escola. As bicicletas contornavam o problema e iam à volta pela Tapada. As velhotas que viviam perto persignavam-se ao menor chiar de pneus. Todos lá na vila viviam angustiados antecipando o despiste iminente.

Só o Zé Mau não se ralava. Com o olhar vidrado posto muito lá adiante, calcorreava alamedas e estradas, só parando para aliviar a bexiga atrás de alguma moita. Diariamente, percorria quilómetros a fio com as suas pernitas delgadas. Não é que o Zé Mau fosse realmente mau: era tão só o doido oficial da terra, ninguém sabia muito bem quem lhe botara tal alcunha.

Numa tarde de Outubro, uma daquelas tardes de precipitação miudinha que tornam escorregadios os pavimentos, quando andava o Zé Mau nas suas deambulações com a cara salpicada daquela chuva molha-parvos, veio um carro travar-lhe aos pés numa chinfrineira de impor respeito. Felizmente não lhe beliscou nem um centímetro de pele. A Dona Clotilde, cuja casa era paredes meias ao cruzamento, assomou de imediato ao postigo num misto de reza e aflição:

- Ó Zé, o qué c'houve?

- É uma hortaliça.


- Nem tudo o que a gente ouve, houve 

Provérbio provado num verso branco - CXXXIV

Avançamos pela vida sem rasgo nem deslumbre

No lugar do morto em piloto automático

Atravessando os instantes em câmera lenta

Cada vez mais ignorantes a cada jornada

Esquecidos de que o tempo é um barco veloz

Cujo instinto é engolir a espuma das ondas

Meio cego imprevidente e impaciente

Esse amor-próprio é próprio do tempo


Pasmados de céu e do vaguear das nuvens

Acostumados à medida do relógio

Distorcemos a compreensão temporal

Numa realidade composta de matéria

Onde o que vemos e tocamos se faz lei

Sendo assim o tempo a dimensão da mente


Mas tantas vezes o ontem foi igual há um ano

E o ano passado tal como há dez e há vinte

Quando enfim despertamos já passou 

Um intervalo em que acordados adormecemos


Não o futuro não se compadece da imobilidade

O acaso é um caso breve e talvez raro

E a vida de tão fugaz torna-se quase gigante

O dia de amanhã só nos pertence amanhã

O dia de amanhã ainda ninguém viu



Provérbio provado rimado - MCCXXVIII

Com mais um Natal à porta

Não saí da cepa torta

Os presentes quis comprar

E o subsídio sem esticar


Este ano já promete

Novamente se repete

Só que depois no final

Não há presente ideal


Ou já tinha ou vai trocar

Sem intenção considerar

Não foi decisão esperta

A escolha de cada oferta


O melhor da situação

É a família em união

Porque mais que receber

É podermos conviver


O espírito natalício

À partilha é propício

E os Natais de criança

Ficam sempre na lembrança


Como ver na televisão

O Música no coração

Faz parte desse programa

Antes de ir deitar na cama


O bacalhau e o borrego

Tiram ao estômago sossego 

E comer bombons com fúria

Demonstra alguma incúria


Depois de tanto enfardar

Resta apenas constatar

Com um semblante tão triste

Que o Pai Natal não existe


Se crês que estou a mentir

Vais tu mesmo descobrir

Que não adianta afinal

Acreditar no Pai Natal



Provérbio provado rimado - MCCXXVII

Noutro tempo a fidalguia

Era muito considerada

Detinha uma freguesia

Por muros bem rodeada


Mas os costumes em queda

Cada classe confundiram

E não há quem interceda

Para que mais interfiram


Que os fidalgos já não são

Pessoas muito decentes

Têm de aço o coração

E moedas entre os dentes


Terminou pois a tutela

Ninguém quer ser aprendiz

Fidalgos de meia-tigela

Trazem honra no nariz



quinta-feira, 30 de novembro de 2023

Provérbio provado rimado - MCCXXVI

Sinto que tens uma amante

Nalguma terra distante 

Já que és tão indiferente

Ao que me faria contente


Ou então amantes são duas 

Vivendo bem perto das ruas

Que levam ao teu coração

Sem descartar a tesão 


Amantes talvez sejam três

Que tu visitas à vez 

Enquanto eu fico pra trás 

Fui só um instante fugaz


Assim só resta concluir

Que não adianta coagir

Porque se não estás na minha

Mais vale que fique sozinha 



Provérbio provado rimado - MCCXXV

Quando chegas acompanhado

Porque estás de vinho entornado

Que bebeste como aperitivo

E te pôs assim reactivo


Se em estado de embriaguez

Te comportas como más rês

Ficas bravo e tão quezilento

Que te podes tornar violento


Vê se aprendes de vez a lição

Antes que decretem punição

Sempre que já não estejas sozinho

Convence-te que tens mau vinho



Provérbio provado rimado - MCCXXIV

Naquele céu de cometas

Tu és uma estrela escondida

Não me achas convencida

Prescindes de dizer tretas


Não te pões em bicos de pés

Enquanto a conversa manténs

A piada fácil susténs

Sem convites para cafés


Pareces ter humildade

Sem ser disso orgulhoso

Também não te acho vaidoso

Nem que tenhas má vontade


Já sabes que nada procuro

Sem narrativa alinhada

E por eu não esperar nada

É que podemos ter futuro



Provérbio provado num verso branco - CXXXIII

O diálogo com o espelho pode ser

Mais ou menos proveitoso na medida

Da profundidade do lago em que Narciso se debruça 


Pode inclusive ser uma conversa de surdos

Pode ser o silêncio maior do que o pensamento

Ser o silêncio que inaugura conceitos sem contexto


Mas todo o solilóquio precisa de contradição

Faz falta um interlocutor que retire lógica às perguntas 

E possa compartir a mesma solidão em conjunto 


Que nesse instante de descoberta do outro

Consigamos calar mais e escutar em dobro 

Por isso temos dois ouvidos e apenas uma boca 



Provérbio provado num verso branco - CXXXII

Com mais ganas de abraçar mais imprevisto

Alimento-me de acasos indigestos

Que findam inevitavelmente em azia

Não há um menu cujos pratos evitar

Não há guião prévio com ensaio de passos


Esta ausência de uma reflexão séria

Faz-me aluada contudo enluarada

Por não existir um contrapeso para as coisas feitas

Em cima do joelho com meia bola e força



Provérbio provado rimado - MCCXXIII

Tu põe-te a pau ó Marina

Tem calma e não vires bicho

Não fora esse olhar menina

Já estavas ao lado do lixo


Se a perna te querem passar

Ensaia tu uma rasteira

Que seja outro a tropeçar

Não sejas tu a primeira


Abre a pestana bem viva

Arranca e não faças pó

Quem te considera esquiva

É apenas digno de dó



terça-feira, 28 de novembro de 2023

Provérbio provado para um jogo programado

Só é bom esperar se for para conseguir, pois quem não obtém mais paciência não tem. E o caso é arquivado se não flui como o esperado.

Mais se adverte a quem provérbios for procurar sobre o acto de esperar: estes três não irá encontrar. Porque afinal cada ponteiro é que pode contar quanto tempo lhe custa a espera. Na vida e no relógio, o das horas tem o pavio mais curto e só se movimenta quando a mudança é de monta. Já o que indica os minutos, esse vai a todas: curioso e enxuto, todo se estica para adivinhar qual a medida do calendário.

Se é verdade que quem espera desespera, também está escrito que quem espera sempre alcança. Em que ficamos então? Há que primeiro desesperar para lograr depois alcançar? É bem provável, uma vez que a paciência é uma virtude e, atendendo a que no meio é que está qualquer virtude, por conseguinte no meio de muita paciência a virtude é um meio termo. O que só vem sustentar que tanto paciência tal como virtude e espera não passam de intenções. 

Somente o acto de arriscar permite vigiar o curso da vida. E ter a perna mais comprida para compensar certos passos de gigante. Porque, de quando em vez, há ciclos de solavancos e marés desordenadas. E os oráculos falham que se fartam, principalmente a quem presume que nunca fracturam.

Quem não arrisca não petisca e sem exposição à sorte, seja esta da boa ou má cepa, não se pode contar ganhar um jogo. Assim como não há aventura sem arrojo, não se ganha a lotaria sem primeiro comprar a cautela. Assim sendo, não convém 



- Jogar com os trunfos todos na mão

Provérbio provado rimado - MCCXXII

Quem já viu a treva percebe a luz

Distinta da que um mecanismo produz

Tão parecidas a luz e a imitação

Contêm-se a si e à escuridão


A luz com marcas de sujidade

Retina de quem atravessa a idade

Sabendo que a reputação lhe falhou

Mas com tal questão pouco se importou


Se cego pior é o que teima em não ver

Tão complicado será compreender

Qual das mentiras é a verdadeira

Se do excesso de luz nasce a cegueira



sábado, 25 de novembro de 2023

Provérbio provado rimado - MCCXXI

És um idiota chapado 

E um palerma encartado

Está mesmo na tua hora

Baza daqui para fora 


O teu tipo de assédio

Já não tem mais remédio

Sai sem fazeres alarde

Acredita que já vais tarde 



Provérbio provado rimado - MCCXX

O meu nome é Margarida

E sou muito pouco constante

Nuns dias sou muito querida 

Noutros sou mais beligerante


O meu apelido é Batista

Pois o pê ao nome tiraram

Sou uma espécie de artista

Cujos versos não se publicaram


Às vezes eu ainda espero

Uns centímetros de prateleira

Mas depois logo desespero

Por estar na gaveta derradeira


Por isso mais poemas faço

Para ir aumentando o rol

Que um dia me dê esse espaço

Um merecido lugar ao sol


Onde possa da escrita viver

Com esse tom que me define

O meu maior sonho é escrever

Até que qualquer dia me fine 



Provérbio provado rimado - MCCXIX

Se queres conhecer o vilão

Põe-lhe uma vara na mão

Que com um bocado de jeito

Logo dela abusa a preceito


Dá-lhe um cargo de importância

Onde possa falar com jactância

Onde cheio de autoridade

Possa comandar à vontade


Onde possa sem mais ordenar

Sem ninguém que o vá contestar

Qualquer frase que diz fica lei

Como em se tratando de um rei 


Esse vilãozinho caseiro

Tem um certo ar altaneiro

Que no fundo lhe foi emprestado

Por lhe terem muita corda dado


E então já não podem dizer

Que lhe foi negado poder

Inchou tanto que um dia rebenta

De enfarte antes dos sessenta 



sábado, 18 de novembro de 2023

Provérbio provado despropositado

A Eunice até era boa pessoa: tinha bom fundo, melhores intenções e o conselho certo para cada chapéu. Sabia muito bem o que o interlocutor desejava ouvir e calçava como uma luva o papel do chinelo roto. Do outro lado, o pé descalço sentia-se confortado, concordando com a Eunice embevecido.

O problema era outro. E era grande. Do alto do seu metro e setenta e tal e formas bem arredondadas, o problema era grande. A Eunice era a pior colega de sempre, não cooperando em nenhuma das tarefas que lhe propunham. 

Pedir ajuda à Eunice? Era para esquecer. Precisar que fosse buscar algo? Mais valia dar corda aos sapatos. Realizar qualquer ocupação a quatro mãos? Ela não mexia uma palha e ainda ficava com os louros. Sim, porque a Eunice gostava de fazer bonito com o trabalho dos outros.

Não dava para concluir se era burra ou apenas calona, só se percebia que não estava disposta a dar ordem de marcha aos neurónios. E, tal como quem menos dedos tem na testa, tinha a mania que era sabichona. Que sabia muito da poda. Sempre que pigarreava para botar alto a faladura, dava mesmo vontade de se lhe soprar: Cala-te lá, Eunice, cada vez te enterras mais...

Ela não tinha caído no caldeirão, mas cagava cada sentença com toda a pujança de que era capaz. Era tal a entoação estudada que emprestava à voz que se achava até competente para ensinar a missa ao próprio padre. 

A Eunice, lá no seu fantasioso mundinho, ainda estava à espera da promoção que injustamente lhe fora sonegada. Ainda à espera, porém sentada. Havia tentado vários concursos para outros postos de trabalho mas nunca tinha ficado colocada em nenhuma das opções; com grande pesar seu não era seleccionada. Então tinha de aguentar este emprego mal pago. Este emprego, sim, porque não era verdadeiramente um trabalho. Tendo em conta esse factor, a Eunice até nem auferia pouco, uma vez que o esforço que lhe dedicava era nulo.

Umas colegas chegavam, outras partiam. Partiam por fim para a ansiada reforma ou na direcção de outras colocações. A Eunice não sabia o que fazer a tanto ressaibo. Por isso mandava bocas parvas. Tentava denegrir as competências alheias. Enchia o peito de ar em presença de um bigode grosso.

Numa certa ocasião em que se dava mais uma troca de cadeiras, lá ia dando as boas-vindas de um lado e desejando muita sorte do outro a quem progredia na carreira. E, apesar de não ser sequer capaz de suster uma cabeça de alfinete, a Eunice fez o seguinte comentário para a geral: Umas vão e outras vêm e cá fico eu a


- Segurar as pontas 

Provérbio provado rimado - MCCXVIII

Uma queda não é uma falha

Mas ficar caído é fracasso

Sem mexer sequer uma palha

Não deslocar perna nem braço


Ter preguiça até para dormir

Querer dado e arregaçado

São desculpas para não prosseguir

Enquanto se renega o passado



Provérbio provado rimado - MCCXVII

Ele é esperto que nem um alho

Seja em lazer ou trabalho

Passa a perna com facilidade

A qualquer mediocridade


Está sempre bastante à frente

Da turminha do suficiente

E consegue assim distinguir

Um problema ao longe a surgir


Por tão bem saber antever

O que outros terão de aprender

Deram-lhe uma medalha de esperto

E quiseram mantê-lo por perto


Mas então ele não rejubila

Que se metam os espertos na fila

Ele ser inteligente prefere

E mais tarde verá se confere


Espertos também dizem dos cães

E não só dos pastores alemães

Que só com olfacto e visão

Tomam bem qualquer decisão


Assim é a esperteza canina

Muito sábia e não alucina 

Ultrapassa a esperteza saloia

Que entra logo em paranóia




Provérbio provado rimado - MCCXVI

Sempre que há falso amigo

Se diz que provém de Peniche

É expressão que o põe de castigo

Quando deveria ser fixe


É um amigo enganador

De uma onça brava às pintas

Por isso até faz um favor

Que se esteja assim tão nas tintas




Provérbio provado rimado - MCCXV

Se podes olhar então vê

Assim vendo irás reparar

Que o que toda a gente crê

À primeira é capaz de enganar


Pois olhar por cima dos ombros

Não é ver com olhos de ver

Há arco-íris nos escombros

Apesar de ele ali se esconder



Provérbio provado num verso branco - CXXXI

O gesto que fecha a pedra na mão antes do impulso

Acompanha desde logo a gestação da polémica

Antecedendo a discussão de onde há-de nascer a luz

Nenhuma discussão se iguala ao breu


Essa acção já contém uma atitude provocatória 

Que induz em linha recta uma alteração

Pedrada no charco para agitar as águas

Interromper a longa sesta dos acomodados

Para que assistam ao cortar de fita

Que inaugura mais um solavanco evolutivo


 

Provérbio provado rimado - MCCXIV

Sempre de si está tão cheio

Tão imenso e tão superior

Que quando se vê bem no meio

Do povo se acha o maior


Divide as gentes em partes

Por níveis intelectuais

Conforme são as suas artes

Alguns são fenomenais


O que transmite mais calma 

A quem só com ele priva

É contentar-se-lhe a alma 

Com a energia positiva


Imagina ser muito imitado

E que de invejas é alvo

Mas crê ser jamais igualado

Até ser velhinho e calvo


Lá do alto do seu patamar

Onde o próprio se colocou 

Sente-se quase a planar

Por cima de quem o louvou


Quem tem a sorte macaca

De lhe impressionar a retina

Pois guarde na liga a faca

Já crente de que o fascina


Carrega um rei na barriga

E é longo o dito reinado

Com tanta mania antiga

Um dia é posto de lado


Largado numa prateleira

Sem poder obter exposição

Esquecido da dianteira

Aceita qualquer solução 



sábado, 11 de novembro de 2023

Provérbio provado rimado - MCCXIII

Tem seis dedos em cada mão

E nos olhos três cataratas

Além disso também é anão

Com um tique autista nas datas


Quando ele passa na rua

Evitam olhá-lo de frente

E a verdade nua e crua

É que isso lhe é indiferente 


Porque já está habituado

À sua figura invulgar

Desse modo não fica agastado

Pelo esforço para o evitar


Como naquele filme o corcunda

De quem os transeuntes fugiam

Mas depois na vez segunda

Acalmavam e não se afligiam


Com esta ditadura do belo

É muito difícil para os feios

Para quem o espelho é flagelo

Que não lhes ampara os anseios


E então e ao fim e ao cabo

Embora dessa imagem ressintam

Até nem sempre o próprio diabo

É tão feio como alguns pintam




Provérbio provado rimado - MCCXII

São ideias em catadupa

Sem que precise de lupa

É uma miríade tal

Não resta nada no final


E são tantas a erigir

Que terão de então colidir

Porque vivem a saltitar

Só servem para atrapalhar


Porque não são firmes e fortes 

Tendo alicerce e suportes?

Porque nelas não tenho certeza

E não deito as cartas na mesa?


No fundo o que eu receio 

É expor-me ao olhar alheio 

Porque sempre alguém há-de vir 

Apontar o dedo a seguir 



Provérbio provado rimado - MCCXI

Eu escrevo porque não posso

Mudar realmente o mundo

Ou eu seria um colosso

Seria grave e profundo


Assim cá ando a anhar

Matando piolhos na boina 

Sou bom é para disfarçar

Mas sou de facto um estroina


Por norma estou distraído 

E não me agarro a ideias

Se o momento é repetido

Descarto-as às mancheias


Então vou desenrascando

Com a minha cabeça de vento 

Assim vou o tempo matando 

Enquanto durmo ao relento 



Provérbio provado rimado - MCCX

Lisboeta é um alfacinha
Mesmo que não seja de gema 
E se repetires a gracinha
Pode ser que arranjes problema

Não pertence a essa salada
Por estar verde de inveja
É alma desenraizada
Que o seu cantinho deseja

Sempre que tem bom aspecto 
Mesmo que a saúde fracasse 
Alguém afirma em decreto
Que está fresco como uma alface 


Provérbio provado rimado - MCCIX

És uma ave nocturna

De dia andas taciturna 

Só quando se põe o sol

É que largas o lençol


É nesses momentos fugazes

Que sentes impulsos audazes 

E renasces como se fosses

Esconder na mala mais doces


É este teu grande segredo

Que chega até a dar medo

Pois de dia só vives morta

Tens encerrada a porta


Quem a ti quiser chegar

Terá de então a arrombar

A porta é forte e tão alta

Que nem ter chave faz falta


À sua volta há muros

Erguidos por motivos duros

A decepção não devia

Originar essa azia 


São enormes os entraves

De cada vez são mais graves

Promoves assim tal distância 

Que chega a parecer petulância 


Aconselho que não te escondas

Que evites fazer mais ondas

E então páres de contestar 

Que à ribalta queres chegar


Já que achas lá bem no fundo

Que é todo para ti o mundo 

É de noite quando em contraluz

Que esse todo mais te seduz 











sábado, 4 de novembro de 2023

Provérbio provado rimado - MCCVIII

Duas horas de viagem

Do Artur me separam

Logo construo uma imagem

E as ideias não param


Vejo-me sobre carris

A ir ao seu encontro

E chegarei lá feliz

Com a vontade no ponto


Como será esse instante

Quando os olhos toparem

Que é momento importante 

Para as bocas se beijarem?



Provérbio provado rimado - MCCVII

Só um verbo é o fazer

Já são dois para quem quer

Ver de frente amiúde

No que dá uma atitude


Se apenas fica à espera

Do que o outro considera

Nunca mais se passa nada

A coisa sai bem furada


Há tantos verbos caducos

Que não servem aos malucos

Que proferem sem pensar

O que a gana lhes mostrar


Por isso tu nada temas

Não receies mais problemas

Abre a boca e vai disto

Eu prometo Evaristo



sexta-feira, 3 de novembro de 2023

Provérbio provado rimado - MCCVI

Quem eu quero não me quer

Porém tenho onde escolher

Outro provável parceiro

Que se dê todo inteiro 


É uma oferta tamanha

Que parece coisa estranha

De facto não dou vazão

A toda essa atenção


Em tendo assim ao dispor

Essa vontade de calor

A dúvida logo me assola 

E desconfio da esmola 


Assim não me posso queixar

Tenho sempre de jantar

Mas se um dia não houver pão

Até as migalhas vão 




Provérbio provado rimado - MCCV

Pergunta que deixa à nora 

Por querer simular mocidade

Diz-se que a uma senhora

Não se pergunta a idade


Mas porque é que será

Que não querem assumir?

Pois o rosto enfim falará

Não vale a pena mentir 


E se tiver rugas a mais

É caso pra desconfiar

Terá de dizer que os tais 

Trinta e tal eram a brincar



Provérbio provado rimado - MCCIV

Se o estômago é pequeno
Para acomodar as ofensas
Não destribuas veneno
Mesmo se é o que pensas

Porque o olho por olho
Também o dente por dente
Embrulha tudo num molho
Que não pode ser consciente

Vingança é coisa parca
Típica de mente menor
Que imprime uma marca
Que só transpira rancor 

Por isso faz-te distante
Quando te amodestam
Não deixes rasgar o semblante
Pois é assim que te testam



Provérbio provado rimado - MCCIII

Só no fim há a certeza

Do que já foi adivinha

À mistura com a surpresa

Do que aí se avizinha


Deixa uma dose de acaso

Não planeies com afinco

Pois isso pode dar azo

À imposição de um trinco


Para saber o que virá

Enquanto o carrossel gira 

Sem aviso a vida dá

Sem aviso a vida tira


Logo não são necessários

Tantos planos tantas metas

Já que os actos arbitrários

Podem ter várias facetas 



Provérbio provado dispensado

Só pode ser a sua carência gigante que o denuncia. Elas percebem instintivamente que algo ali não bate certo. Percebem que nem toda a dedicação da mais desinteressada, nem todo o desvelo que não cobra, nem toda a companhia aconselhando em silêncio são passíveis de colmatar tamanha necessidade de atenção. É tanta a sede ao pote que a torneira se contorce em pose de greve.

Ele teima em ignorar todos os alertas e pratica um assédio de rosto lavado. Atencioso e prestável, mas que não deixa de ser assédio. Fica facilmente agastado quando elas cortam a comunicação. E elas acabam sempre por trancar as vias de acesso porque se fartam dele. É fácil acontecer: ele torna-se numa autêntica lapa, daquelas com super cola nas ventosas. Ainda não está a mesa posta, já ele vai dispondo as cartas por cima. Com exagerada sinceridade, excesso de confidências, uma desmesusada franqueza para uma confiança que não acontece, que ele não repara que não está a acontecer. Quer que elas engulam de chofre uma soma de características suas, maís ou menos evidentes, que põe de imediato a descoberto. Envia mensagens em catadupa, faz telefonemas a horas descabidas, em suma cada vez se enterra mais.

Com a crescente indiferença a que é votado, é atacado pelo ressaibo com laivos de agressividade passiva. Crendo que o descartam por sobreviver com um magro subsídio de desemprego, insulta-as, agrega-as numa massa indistinta de caçadoras de fortunas, criaturas fúteis que apenas ambicionam luxo.

O que acontece invariavelmente é que deixam de lhe responder, passando a ignorá-lo mudamente, à espera que ele se toque e desista de vez. Nenhuma tem a coragem de lhe dar um vivo chega-para-lá, de lhe dizer abertamente que é um chato de galochas, de lhe sugerir que vá mas é dar uma chuveirada ao cão ou de lhe atirar com a famosa expressão:


- E se fosses ver se eu estou ali na esquina?

Provérbio provado rimado - MCCII

A bondade simulada

Acaba por ser mais nociva

Que a maldade destapada

À qual falta iniciativa


Pois esse tipo de bondade

Que se benze e choraminga

É toda ela falsidade

E de simulacro respinga


É maldade com muito requinte

Dando um passo dianteiro

E esse actor por conseguinte

É um lobo em pele de cordeiro



quinta-feira, 2 de novembro de 2023

Provérbio provado rimado - MCCI

Já estava a achar muita fruta

Que não acusasses o toque

Porque tu és deveras astuta

E queres levar-me a reboque


A tua maior intenção

É fazer sempre boa figura

Mas falta maior dimensão

À tua escassa cultura


Gostas de mostrar serviço

Alapada no trabalho alheio

E vestes um olhar mortiço

Quando mostras saco cheio


Mas só acrescentas à toa

O teu gesto é tão maquinal

E crês que a tua pessoa

É deveras excepcional 


Um dia acaba-se a mama

E descobrem-te a careca

O teu destino é a lama

Por seres levada da breca 



sexta-feira, 27 de outubro de 2023

Provérbio provado rimado - MCC

Quando a mudança da hora
Abraça um equinócio
É Verão ou Inverno agora
Começa um tempo de ócio

A estação intermédia
Tornou-se obsoleta
O que para uns é tragédia
É para outros uma treta

O clima é independente 
Alheio às preferências
De progressão suficiente
E não engloba tendências

Mas toma sempre tão conta
Das conversas com receio 
Por ser uma opção de monta
Traz cheirinho de recreio

Seja de varanda a varanda
Ou dentro de um elevador
O tempo é quem mais manda
Faça muito frio ou calor 

A meteorologia anteveu
Um tipo qualquer de tormento 
Mas hoje até nem choveu
E assim só sopra o vento

Alguns minutos de prosa
Souberam chouriços encher
Nessa ocasião vagarosa
Na qual apetecia esconder 

Na falta de um tema qualquer 
Que de vergonha é capaz 
Todos sabem discorrer
Sobre o tempo que faz