Provérbios Provados noutras casas:

sexta-feira, 24 de novembro de 2017

Provérbio provado nada emocionado

A Felismina criou-se como pôde. Cedo orfã de mãe, era com o pai militar que partilhava os seus dias. O irmão, mais velho dez anos, partira no dia em que a mãe partira, tinha Felismina oito anos. Nunca soube nada dele, a não ser que se chamava José Falcão como o pai, cheirava a tabaco que tresandava e emigrou para França. Vou à procura de uma vida melhor, disse-lhe após o funeral, acontecimento que Felismina aguentou estoicamente sem verter uma lágrima para não decepcionar o pai. Levou dois fatos de Domingo, a Bíblia que era da mãe e um volume de Português Suave sem filtro. Levou também os últimos sorrisos que houve lá por casa.
O José Falcão pai era sisudo e mal humorado. Felismina nunca soube exactamente o que ele fazia: quando tinha de preencher algum formulário com a profissão do pai escrevia simplesmente militar, e se lho perguntavam dizia simplesmente militar, encolhendo os ombros quando indagavam da patente. Ora, alguma coisa há-de ser, capitão, alferes ou soldado raso, minha querida!, disse-lhe uma vez a Dona Maria dos Anjos, a única vizinha que às vezes vinha saber se ela precisava de alguma coisa. A Dona Maria dos Anjos não fazia perguntas: tinha o irritante hábito de lançar exclamações para o ar e ficar à espera de uma reacção. Com a Felismina não tinha sorte nenhuma, ela era tímida e pouco conversadora e despachada só nas lides caseiras, que desempenhava de uma penada para depois ter tempo para mergulhar na leitura.
Lá em casa não podia haver barulho, o pai não gostava de música e raramente ligava a televisão, limitando-se a ficar sentado num cadeirão a seguir ao jantar, olhando o vazio com uma expressão feroz, até que as pálpebras se semicerravam e se ia deitar sem nunca despir a farda. Era então que Felismina se dedicava a ler, esperando que o pai não acordasse para a obrigar a apagar a luz, às vezes nas passagens mais emocionantes. Eram as colegas que lhe forneciam os livros, já que a Dona Maria dos Anjos só coleccionava o que dissesse respeito a Fátima e aos três pastorinhos. Como tinha de ir direitinha para casa após a escola, era esse todo o convívio que tinha: vê lá que livro trazes amanhã para me emprestar! Devolvia-os rapidamente e tão estimados como lhe vinham parar às mãos. Mas de histórias de amor não gostava, achava tudo muito rebuscado e era-lhe difícil crer em tantas emoções de gente que não se sabia controlar em ambientes invulgarmente perfumados. Para ela, romance era um livro com mais de duzentas páginas.
Quando tinha vinte anos e conheceu o Carlos, vinte anos mais velho, aceitou sem expressão o anel e a benção do pai, que nesse dia teve um esgar semelhante a um sorriso e até deixou a Dona Maria dos Anjos trazer um chá e uns bolinhos enquanto exclamava muito afogueada vamos ter casamento!
A Felismina disse aceito sem pestanejar no altar, mas nunca devolveu a Carlos uma frase mais ternurenta ou uma carícia fora das quatro paredes do leito.
Um dia bateram-lhe à porta. Pensou que o marido se tinha esquecido das chaves. Foi abrir e mal reconheceu a figura. Sou o José Falcão, o teu irmão. Sentiu um cheiro familiar e, enxugando uma lágrima, foi buscar-lhe um cinzeiro e dispôs-se então a conversar.

- Quem come fel não pode cuspir mel

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