Provérbios Provados noutras casas:

terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Provérbio provado esperançado

A Esperança nasceu numa família de escassos recursos; abundantes mesmo, só os mimos e atenções que os pais dedicavam aos dois filhos, que foram sempre acarinhados. Quando pensa na infância, lá está ela: num baú sem chave e um odor eterno.
A Esperança cresceu e foi vivendo uma vida normal, recheada de alegrias e tristezas, êxitos e fracassos, vitórias de uma vontade férrea e alguns tropeções no destino, apanhada desprevenida diante de um mundo obcecado pela competição, o ganhar, o ter e o parecer.
A Esperança foi tia de dois mas, profunda sua pena, nunca chegou a casar nem teve filhos. Ficou com a melhor parte, dizia, podia saltar as perguntas mais incómodas e as birras mais chatas dos sobrinhos. Dizia isto com uma gargalhada, e claro que era mentira.
A Esperança viu morrer os pais, pela ordem natural da vida, e a dada altura perdeu subitamente o sobrinho, a vida a brincar às excepções. Viu depois morrer o irmão e em seguida a cunhada. Foi acumulando coisas inúteis, louças, toalhas, livros, fotos antigas, aniversários de familiares que partiram, recordações para ninguém.
A Esperança foi recentemente tia-avó: viu a netinha através dum computador e até podia ouvir a sobrinha falando, com a menina ao colo dormindo, do outro lado do Atlântico, imagine-se!

- A esperança é a última a morrer

quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Provérbio citado (WALSER)

« (…) O meu colega, de resto, é um homem mais velho e mais infeliz, antigo proprietário de uma cestaria que se arruinou na sequência de infortúnios vários e que agora trabalha à jorna como copista, tal como eu, só que eu não pareço copista nem jornaleiro, mas sim um inglês excêntrico, ao passo que o meu camarada parece alguém que se recorda constante e dolorosamente de melhores dias. A maneira amável e comovente como caminha e como assente sempre com a cabeça conta a história da sua desdita numa linguagem que não conhece a vergonha. É um homem mais velho e já não quer impressionar ninguém, quer apenas manter-se de pé. Mas impressiona-me a mim, porque eu conheço o seu sofrimento e o peso que carrega nos ombros e o esmaga. Sinto orgulho em caminhar com ele num bairro tão elegante e aproximo-me dele sem qualquer embaraço para assim demonstrar o meu apreço espontâneo pelo seu fato de qualidade inferior. Deparo-me com vários olhares estupefactos, um ou outro fabuloso par de olhos que parece interrogar-me, e isso diverte-me, para o diabo com os outros! Falo alto e com grande ênfase. O fim do dia é tão propício à conversa. Trabalhei o dia inteiro. É magnífico passar o dia a trabalhar e depois sentir um bonito cansaço que nos reconcilia com tudo e com todos. Não ter um cuidado, um pensamento. Poder passear com ligeireza, com a sensação de não ter feito mal a ninguém. Olhar em volta para ver se agrado a alguém. Sentir que agora sou um pouco mais digno de amor e respeito, em comparação com os dias que passei a mandriar, dias que caíram num abismo e se esvaneceram como fumo. Sentir muito, sentir inteiramente este fim de tarde oferecido! Sentir o fim da tarde como uma oferenda, porque é uma oferenda, de facto, para quem passou o dia a trabalhar. Assim se dá e assim se recebe

 In Os irmãos Tanner – Robert Walser

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Provérbio funcionário

No meu serviço, digo no meu serviço porque por aqui é costume dizer-se assim, as pessoas tratam-se por colegas porque por aqui é costume dizer-se assim.
No meu serviço, não há cão nem gato que não queira mandar mas as colegas inventam urgências de tarefas quando é preciso ajudar.
No meu serviço classificam-se documentos: podem arrumar-se também as colegas segundo determinada categoria?


Há-as sempre atrapalhadas, à nora, que repetem perguntas e pedem assistências, e andam em círculos para apressar o ponteiro dos minutos. E depois há as que com elas vão atrás como o cú, por arrasto, atrasadas na opinião, a pensar na morte da bezerra. Neste grupo dormem na forma as pachorrentas e sem energia que se movimentam a passo de caracol.
No oposto para lá do ensaio da lentidão, temos as colegas apressadas, com o mundo fugindo debaixo dos pés, sempre atarefadas e afogueadas, tantas vezes nessa urgência disfarçando a falta do que fazer.
Há-as também assustadas, pálidas e de olhos sensíveis, que trazem o coração nas mãos receosas dum perigo invisível, maus-olhados-invejas-energias, e são atacadas por frequentes alergias.
As maldispostas guardam sete pedras atrás das costas, de pé atrás, desconfiadas, e ninguém se meta quando vêm de faca e calhau.
E as colegas que apalpam terreno, rodeiam, rodopiam, e depois trepam: o que dizer deste maravilhoso obedecer aos seus instintos territoriais?


Afinal aqui no meu serviço há de tudo como as estações do ano e as colegas, tal como elas, vão intercalando várias disposições e adicionando outras tantas que não descrevi. E afinal aqui no meu serviço:

- Ainda há quem faça bem, não há quem saiba agradecer