Provérbios Provados noutras casas:

domingo, 17 de março de 2024

Provérbio provado apartado

Se te lembras, a Matemática nunca foi o meu forte. Errei sempre as somas e as multiplicações. Só a dividir obtinha uma nota positiva - isto pensava, porém não consultei a pauta. Tinha um problema com as contas e um excesso com as palavras. E tu eras o oposto, não eras? Todo dado aos números e poupado nos elogios.

Pensar nisso agora não muda nada, o arrependimento não muda o passado. E o esquecimento aprende-se rápido.

Sabes?, se calhar não sabes..., deixei de sentir a tua falta. De vez em quando uma lágrima, uma só, ainda cai como num luto antigo. Uma só lágrima se acaso uma música que ouvíamos juntos ou se te pressinto ao virar da esquina e fujo dali. Mas não se assemelha a um pranto cara abaixo, daqueles que alcançam o pescoço. Nem chega a ser uma tristeza sem nome nem coragem.

Não, não tenho saudades, podes acreditar na sua ausência. É isso: uma ausência, um vazio dorido numa superfície suja, percebes?

Já nem sequer me lembro se te amei, mas recordo bem o nome carinhoso com que nos tratávamos, bebé.


- Longe da vista, longe do coração 

sábado, 16 de março de 2024

Provérbio provado num verso branco - CXLI

Daqui ao futuro já meio caminho andado

Uma boa parcela de esforço realizada

Se há progresso inicial aumentam as hipóteses

De ser alcance e não apenas desejo


Mas ninguém pode amparar a eternidade

Entre os braços como num embalo criador

Todas as promessas são por natureza vadias


O infinito não mora na impossibilidade

Desde que possa ser cada dia onde se existe

O futuro nunca compensa antes de tempo

Nunca compensa em face da expectativa

Para sempre é sempre por um triz



Provérbio provado rimado - MCCLXXV

Meu filho o mundo é redondo

Mas os cantos estão ocupados

Por gente que passa com estrondo

São uns idiotas chapados


Eles têm por característica

No que dizem só acreditar

Mas se vamos crer na estatística

O melhor é mesmo ignorar


Pois as pérolas que proferem

Nada de novo acrescentam

E apenas aos donos conferem

Toda a parvoíce que ostentam



terça-feira, 12 de março de 2024

Provérbio provado rimado - MCCLXXIV

Anda bem agasalhado

Pra não estares constipado

E usa sempre cobertor

Faça frio ou calor



Provérbio provado num verso branco - CXL

A grande maioria dos frutos

Prefere amadurecer nos ramos mais altos


Os frutos tingidos são balões

Apontando na direcção dos céus


Mas há os que não nascem nas árvores

Frutos que se apanham do chão


Há frutos em que se pode tropeçar

Na magnitude dos seus caroços


No entanto o fito está na polpa

Está nos olhos que se erguem


O desejo mora sempre mais acima

E quem quer bolota tem de trepar



Provérbio provado num verso branco - CXXXIX

Se escuto o ouvido interno

É hora de dar voz ao instinto


É importante que em toda a parte

As gavetas estejam bem arrumadas


É certo que a gente tem uma medida

Exacta e certa para cada coisa


A distância que atribuo ao meu polegar

Pode corresponder a três passos teus


Analisa bem os números na régua

Um polegar é igual a três passos


Deseja pouco nem mais nem menos

De rio pequeno não esperes grande peixe



Provérbio provado rimado - MCCLXXIII

Quem confunde áurea com aura

A Tieta com a Escrava Isaura

E põe ésse nos seus devaneios

Estraga o português sem rodeios


A aderência e a adesão

Fazem-lhe imensa confusão

Muito abusa da redundância

E ao caso não dá importância


Maltrata o verbo haver

Depois há-de no Hades arder

E sempre que diz derivado

Devia ser logo avisado


Aconselho que volte à escola

E que meta a língua na tola

Pois pra ele muito falar

É sinónimo de pouco acertar



sexta-feira, 8 de março de 2024

Provérbio provado rimado - MCCLXXII

O Jota só quer poleiro

Andar a exibir os galões

Bate o tacão altaneiro

Para não dar encontrões


Está sempre bem penteado

Tão asseado é o Jota

De fato bem engomado

Dá-se ares de janota


O seu desejo é crescer

E almeja tal ascenção

Não quer o poleiro perder

Pra não rastejar junto ao chão



Provérbio provado desgovernado

Pronto, estavam assinados os papéis. Estado civil: divorciada. Custou um bocadinho; pronto, custou bem mais do que um bocadinho, mas agora aquela porta estava definitivamente encerrada. Podia deitar fora as chaves e descer as escadas sem olhar para trás.


Uma amiga, recentemente emigrada, falou-lhe nas aplicações de encontros. O ar do tempo. Levada pela curiosidade criou um perfil. Três ou quatro fotografias discretas, um texto de apresentação elucidativo mas não demasiado longo.


Já conhecia grande parte dos motéis dos subúrbios. A hora de almoço era um corropio. Alguns nem tiravam a aliança. A excitação inicial e o prazer obtido foram perdendo qualidade. A ginástica das agendas cansava-a e continuava a sentir-se só.


- Quem se governa com a picha alheia nunca se governa quando quer 

Provérbio provado rimado - MCCLXXI

Disseram-lhe Vem por aqui

E logo declinou o poeta

Não nego tudo o que vivi

Mas não sou nenhum profeta


Ele passou parte da vida

No meio de um vendaval

Que nos versos foi vertida

Com um toque especial


Sentiu-se sempre infinito

Sem princípio e sem fim

Nunca um menino bonito

Com diplomas e jardim


Deus e o Diabo o fizeram

Foi um trabalho completo

Que outros apareceram

Sem tal espírito insurrecto


Ele nunca se acomodou

Gritando aos quatro ventos

Que o átomo que o animou

Lhe ferveu os pensamentos


Pediu sempre por favor

Cuidado com as intenções

Que disfarçadas de amor

Poluem tanto as emoções


Cheio de força e de tusa

Deixou brilhantes poemas

Que integram a alma lusa

E seus principais dilemas


Mas na pátria os artistas 

Pouco são reconhecidos

Que ditam os economistas

Que não sejam enaltecidos 


Nomeando o José Régio

Presto-lhe esta homenagem

Não é nenhum sacrilégio

Pois tal foi sua coragem


E imaginando que me lê

Quero entregar um presente

Ó José diz-me porquê

Ninguém te fica indiferente


Após fazer a questão

Ofereço-lhe um ditado

Se esperas consideração

É melhor esperares sentado 




quinta-feira, 7 de março de 2024

Provérbio provado desnorteado

Ao fim de alguns meses a rondar cardumes sem que se aferissem nas redes mais peixes, os colegas pescadores do Amor do Sado alcunharam-no de Zé Vadio.

Não é que o Zé chegasse atrasado à faina, embora as olheiras denunciassem falta de sono. Também não é que fosse mandrião, pois largava -se ao trabalho com desenvoltura.

O problema do José Domingues era notoriamente uma lacuna na capacidade de concentração. Não se ocupava da mesma tarefa mais do que um minuto seguido, deambulando amiúde pelo convés com uma expressão ausente. Largava o impermeável e as galochas em qualquer buraco e depois acabava por andar a malta toda em busca dos seus paramentos. Punha sal no café e açúcar no arroz. O Zé Vadio era mais do que apenas distraído: era a desgraça total.

Tinha o hábito de debruçar o tronco na borda do barco anunciando alto e bom som: Até lhes vejo as espinhas! E então corria da proa à ré com o indicador molhado de saliva para sentir o vento. Para o Zé nunca estava de feição: a nortada fazia os peixes afundar, o suão mudava-lhes a rota. O vento tinha as costas largas. Tão largas como o mar e o horizonte.


- Quem navega sem destino nenhum vento é favorável 

Provérbio provado rimado - MCCLXX

Quem fica de faces coradas

Com as coisas comentadas

Ou de repente tem tosse

E age como se nada fosse


Se também engole em seco

Ao pé de qualquer badameco

Que lhe prega um raspanete

É porque enfiou o barrete



Provérbio provado rimado - MCCLXIX

Mandaste-me mais para sul

De Braga por ali abaixo

E eu fiquei logo azul

Com grande cara de tacho


Foi igual a me mandares

Direitinha àquela parte

E nesse momento virares

O bico ao prego com arte


Outrora pra ti bestial

Tornei-me na besta maior

Que o teu desprezo foi tal

Na voz senti-te o rancor


Fiquei um bocado ofendida

Mas depois chegou o perdão

A mais bela coisa da vida

É poder demonstrar compaixão



Provérbio provado rimado - MCCLXVIII

O Tó sempre foi ocioso

Até quando andava na escola

Era um menino preguiçoso

Indolente e até mandriola


E quando se tornou adulto

O Tó repetiu a façanha

A mãe concedeu-lhe indulto

Por não perceber que era manha


Ele andava na boa-vida

Trabalhando só o necessário

Com essa pose descontraída

Fazia de qualquer um otário


Por ser assim calaceiro

Pendurava -se nos colegas

Sempre tranquilo e ronceiro

Ele era só bocas e negas


Até que um dia o gerente

Que era um bocado totó

Surpreendeu toda a gente

Dando uma promoção ao Tó


E ao primeiro inquiridor

Que chamou ao Tó calão

Disse Se queres bom mandador

Escolhe sim o mais mandrião



quarta-feira, 6 de março de 2024

Provérbio provado determinado

A bem da verdade, mais que da vontade, houve de tudo um pouco. Houve quem não tivesse sequer terminado o curso, fosse por doença ou preguiça ou por não ter conseguido o tão difícil aproveitamento na cadeira de Termodinâmica. Mas cerca de cinco sextos completaram a licenciatura, numa proporção estabelecida pelo Martim que era o carola a Matemática.
O grupo de recém-licenciados apanhou então um avião para um destino semi-tropical onde dormiu pouco e se embebedou muito. Fizeram-se promessas de jantares futuros e juras de amizade para toda a vida. Só que depois regressaram. E chegou o momento das escolhas.
Quer dizer, chegou o momento das escolhas para aqueles que puderam escolher. Outros houve que tiveram de se contentar com o que apareceu. Tinham médias mais baixas ou falta de um sobrenome sonante. O caminho da grandeza estava-lhes vetado. Fosse como fosse, praticamente todos garantiram um cargo e uma posição remuneratória mais ou menos choruda.

Ao fim de dois anos e meio naquela multinacional, o Rodrigo começou a ficar impaciente. Achava-se uma marioneta e estava sedento de crescimento pessoal. Tivera uma ascensão rápida e auferia um salário formidável, mas sentia-se vazio, incompleto. Os fatos caros e os relógios de marca não lhe enchiam as medidas.
Um dia, sem que nada o fizesse prever, apresentou a carta de demissão e decidiu criar uma pequena empresa de jardinagem. Deixou de ter uma posição de status, passando a ser mais um micro-empresário guiado pela intuição. Perdeu o antigo rendimento mensal e acumulou dívidas a esmo. Porém, feliz como nunca estivera, o Rodrigo gostava de ser o seu próprio patrão.
Quando encontrava algum dos colegas da faculdade, estes surpreendiam -se com a sua decisão. Como quando encontrou o Francisco: de boné à banda e as unhas sujas de terra queixou -se da falta de segurança, da ginástica contabilística e das obrigações bancárias por cumprir. O Francisco tocou-lhe ao de leve no braço e argumentou:

- Mais vale ser rabo de pescada do que cabeça de sardinha

Provérbio provado rimado - MCCLXVII

O que é o jantar mamã?

São línguas de perguntador

Mais a tua se lá for

Até ao raiar da manhã


E amanhã o almoço?

Pergunta curioso o petiz

E logo a mamã lhe diz

Que são cascas de tremoço


E então depois a merenda?

Pois se nada te agradar

Serão bordas de alguidar

Que te ofereço de prenda


Mas o gaiato insiste

O que teremos á ceia?

Vão ser morrões de candeia

A ver se ele desiste



Provérbio provado num verso branco - CXXXVIII

Antes do voo prepara as asas

Para que aguentem o céu o sol e o breu

Sem estremecer ao ponto de falhar 

Que irão decerto abanar nas curvas

É próprio de qualquer linha que tenhas de transpor

Se é que tens um destino se é que tens um lugar 


É a infinitude de possibilidades que te congela antes da partida

Tudo o que pode correr realmente mal é demasiado possível

E essa ligadura em que te embrulhaste

Tolhe-te mais os movimentos do que te sara as feridas 


Engole o veio de saliva que te inunda de receio

Gigante como um princípio que te empata qualquer princípio 

Que ilustra o precipício que ainda não se prefigura lá à frente 

Não adianta que rezes se não for de optimismo a oração 


A ansiedade do início é grande e forte

Mas aguenta também a ansiedade intermédia

E principalmente a ansiedade que traz a repetição

À segunda e à terceira vez não é mais fácil


Existe um peso certo que equilibra os pratos da balança

Para que entre o receio e a esperança o medo não engorde demais

O medo da desgraça é bem pior que a própria desgraça 



Provérbio provado rimado - MCCLXVI

O Marco parece antipático

Por ser de tal forma apático

Demonstra grande indiferença

Por qualquer tipo de crença


Os olhos reviram-se tanto

Mas não é que seja espanto

O que acontece é conforme

A medida do seu tédio enorme


Nada do que o rodeia

O entusiasma ou refreia

O Marco não é acessível

A tudo ele é impassível


A fim de evitar o confronto

O Marco jamais está pronto

Para defender uma ideia

Que outras desencadeia


Não vale a pena por isso

Armar grande reboliço

Pois com o Marco ó caneco

É estar a falar pró boneco



Provérbio provado rimado - MCCLXV

Dos actos irreflectidos

Não esperes uma progressão

São gestos descontraídos

Feitos sem grande intenção


Assim como quem não quer

O que lhe põem à frente

Pois dá trabalho escolher

O que lhe é indiferente


Essa atitude blasé

Não cria nenhuma mudança 

E não percebo porquê

Será no fundo cagança?


Palavras da boca pra fora

Membros rígidos e tensos

Só apetece ir embora

Não batalhar por consensos


Que as lágrimas de sermão

E a chuva de trovoada

Quando caem na terra do chão

Normalmente não valem nada



Provérbio provado acelerado

Não sei porque é que não levas em conta os meus conselhos, Juliana; sou o teu pai e se desejo algum mal para ti que venha para mim, filha. Devias ouvir mais o que te digo: ando há muitos anos a bater mato e tenho mais experiência do que tu. 

Sabes qual é o segredo, minha filha? É nunca desistir, continuar sempre em frente. Em cinquenta anos de trabalho nunca faltei: ia constipado, ia com febre, mas ia sempre!

A tua mãe nunca compreendeu esta minha forma de ser. Principalmente quando eu não alinhei naquelas sessões de terapia de casal, era só o que me faltava! Então ela chegava do psicólogo com a cabeça cheia das tretas que ele lhe impingia... Acusava-me de praticar a chamada fuga para a frente; ou seja, o que ela queria dizer era que eu andava a empurrar com a barriga, como se não soubesse o que andava a fazer.

Já viste a desconsideração, Juliana? Eu que nunca lhe deixei faltar nada e ela, de repente, de um dia para o outro, só me encontrava defeitos. Pois bem, dei-lhe o divórcio como ela quis! Nem pestanejei. Assinei os papéis e lavei dali as minhas mãos.

Por isso te repito, filha, é continuar sempre em frente, aguentar os embates, dar luta até ao fim.


- Andar para trás é ensinar o caminho ao Diabo