Provérbios Provados noutras casas:

quarta-feira, 6 de dezembro de 2023

Provérbio provado calçado

Sobranceiro a um largo maior com um pelourinho, que era a principal praça da aldeia, o adro, a bem dizer, só tinha três edifícios: a bonita igreja que lhe dava o nome - e dera à terra um longínquo foral -, o prédio bem cuidado dos correios e a casa do Sr. Abílio que, vistosa e pintada de fresco, se impunha na paisagem.
Quando as três filhas já estavam espigadotas, o Sr. Abílio e a atenciosa D. Amélia com quem trocara esponsais haviam inaugurado a mais central casa nova.
No enorme rés-do-chão havia um quintal com algumas árvores de fruto, uma cozinha de fora e uma capoeira desafogada, num aproveitamento bem pensado do espaço por baixo das escadas que levavam ao segundo andar. Ainda nesse piso térreo, ficava a loja com uma porta que dava directamente para a rua e em cujo tapete se liam as boas-vindas. No rés-do-chão também se localizava a grande garagem que guardava a velha carrinha Ford cor-de-laranja onde cabiam centenas de caixas de sapatos que percorriam as feiras ambulantes. No segundo andar, mais reservado à família, afadigavam-se D. Amélia e as suas belas filhas nas suas rotinas costumeiras.

Assim se descreveu a casa tal qual Ramalhete para agora enfocar na sapataria. 
Quem chegava ao adro não descortinava ali qualquer negócio. Não havia um letreiro e, às vezes, até era preciso tocar à campainha. E, se o tapete era retirado, era um indicador de que a família estava para as feiras.
Um negócio discreto, este do Sr. Abílio, possuindo contudo o monopólio das redondezas, já que não havia qualquer concorrência num raio de quinze quilómetros quadrados.
A loja era pequena e tinha um pequeno armazém contíguo onde se alinhavam sapatos, botas, chinelos e sandálias, agrupados por modelos. As biqueiras mais largas ficavam por baixo, os números menores em cima. A outra porta interior levava à já mencionada garagem onde, num canto que destoava pela desarrumação, ficava a oficina de sapateiro do Sr. Abílio. Ali mesmo, em cima da compra, colocava os sapatos em formas que os alargavam para dispensarem a calçadeira.
A freguesia da sapataria era muito homogénea na frequência e nas necessidades. A grande enchente semanal dava-se antes da missa das onze, sendo essa a razão para o Sr. Abílio não folgar ao domingo. 
Os clientes, vindos dos casais adjacentes, procuravam calçado para um de dois cenários: as botas de agricultor para trabalhar durante a semana ou os sapatos de domingo. As botas subiam pelo tornozelo e tinham atacadores e sola grossa de borracha, sendo abundantemente ensebadas às primeiras chuvas. Já os sapatos, enfim, eram encolhidos mais pelo desenho do que pelo conforto. Podiam até apertar um pouco os calos ou fazer bolhas no calcanhar, isso fazia parte da sua condição de sapatos de um dia só. Podiam até durar vários anos guardados numa caixa envoltos em papel vegetal.
Aos domingos, as casaleiras entravam porta adentro com um par de crianças ranhosas em cada mão e rogavam:
- Ó Sr. Abílio, arrange-me aí uns sapatecos para os meus garotecos!
Antecipando o momento de gozo dominical em que, pelas frestas dos estores no segundo andar, topavam os basbaques que acorriam ao toque dos sinos para a missa, as três filhas casadoiras recebiam por vezes as primas da capital. Todas as cinco desciam então para longas brincadeiras na loja.
As clientes, afogueadas e atrasadas, já ia a missa a caminho da homília, ficavam verdadeiramente surpreendidas ao ver as meninas da cidade grande a experimentarem calçar botas de agricultor.


- Dá Deus botas a quem já tem sapatos 

Sem comentários: