Tenho um bocado de pena deste calor, coitado. É aquele bêbado muito bêbado que insiste repetidamente em mais uma para o caminho, cada essa sempre a última e o caminho cada vez mais aos ésses. Ou outra letra, qualquer uma serve, já não conhece a direcção nem sabe regressar a direito, e há que dizer-lhe com todos os éfes e érres que está na hora de ir para casa. Mas ele continua a empastelar a voz, atrasando-se em gestos muito lentos, sempre a recontar como entrou Maio adentro sem avisar, assustando deveras a Vera, a prima de faces coradas e cheiro a flores campestres, de quem todos têm sempre saudades. E já estão a ficar sem paciência para este Verão tão inoportuno, duma arrogância sem relógio no pulso, que chega ruidosamente adiantado e não sabe despedir-se a tempo, mas há sempre quem, seja por educação ou por não gostar de arrumar o biquíni, o acompanhe na eterna última bebida, desde que devidamente alapado à sombra. O Verão nem agradece, vê-se que habituado aos mimos de estação preferida, com maioria absoluta inquestionável. Muitas rugas devidas a bronzeados indiferentes, daqueles que vão entrando pele adentro sem com licença, um casal de sóis numa relação passional muito brilhante. Claro que são dois e andam de braço dado, nem pensar que um só sol responsável por tardes assim tão brancas e roupa alagada em pastosas gotas de suor. Tantas vezes vai o cântaro à fonte que um dia volta sem trocos, não é assim que se diz? E então o Verão finalmente parte com as aves migratórias mais retardatárias para ir ser entronizado no hemisfério que acabou de destituir o frio que andou a roubar a alegria às pessoas.
Por onde andas, Outono? O bilhar grande não é assim tão longe e, repara, só depois das trovoadas que acompanham as vindimas e das marés vivas é que podíamos dar passagem aos arco íris. Se calhar estás para aí metido num engarrafamento de fim de tarde, agora que as escolas estão cheias de crianças de novo e junto às portas destas muitos carros acotovelando-se, prontos a engolir mochilas pesadas e cabelos num desalinho. Ou então ficaste chateado, por se dizer por aí nas conversas de café que já não há meias estações, a culpa é do homem ter ido à lua, parece. Faz como a Vera, deixa-os falar. Na lua não caem folhas das árvores quando começam as primeiras chuvas. Na lua não há sapatos fechados fechados em caixas que se abrem quando tu chegas. Não há gavetas cheias de camisolas de lã à tua espera num murmúrio de borbotos amargurados. Lá na lua não se diz vou pôr mais um agasalho na mala porque afinal já estamos no Outono. Está a chegar a tua hora, não te atrases, sabemos que tens sempre o relógio certinho por causa da mudança da hora, e agora que o sol está solteiro de novo é mais fácil convencê-lo a ir cada vez mais cedo para a cama.
- No Outono o sol tem sono
sexta-feira, 13 de outubro de 2017
Provérbio outonal - II
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