Todo o homem nasce com o seu nome e não há nome sem sobrenome. O nosso homem chama-se António Maria da Silva Peneda e já passou dos trinta há algum tempo. É magro e de estatura mediana e ainda tem todos os dentes e o cabelo. Mas assim como não há nome sem sobrenome, também não o há sem alcunha, e o nosso homem é localmente conhecido por Tó da Taberna. Qual taberna?; não é preciso especificar: nesta aldeia só há uma e nem se diz “a taberna”, mas apenas “vou ali ao Tó”. O Tó é para todos como se fosse da família e passa por ser um homem honesto e trabalhador; é também bastante devoto e leva uma vida austera: não bebe, não fuma, não tem o vício das cartas nem do dominó.
A mulher do Tó chama-se Amélia, mas nem toda a mulher nasce com o seu nome. Na aldeia só há uma Amélia, mas as pessoas dizem apenas “vou ali à do Tó”. A do Tó cuida da casa e dos filhos, e às vezes faz uns petiscos quando é dia de futebol, pois há poucas televisões lá na aldeia e os homens juntam-se ruidosamente na taberna a ver o jogo.
O Tó e a mulher têm três filhos, todos em idade escolar. Os avós já morreram, eram os mais ricos da aldeia, mas o pai do Tó tinha o vício da bebida e assim arruinou o bolso e a saúde. Morreu novo e a mãe do Tó ficou pouco tempo viúva: morreu um ano depois com o desgosto. A casa de família fica por cima da taberna e é modesta e, embora não vivam na miséria, o Tó não pode evitar uma grande saudade dos tempos felizes e sem preocupações de dinheiro da sua juventude. À hora das refeições há muitas mãos no mesmo prato, mas o Tó exige silêncio à mesa e não admite guerras com a comida, divide tudo em porções iguais na cozinha aquecida enquanto murmura um dito aldeão - “não há lenha como o azinho, nem carne como o toucinho” -, lastimando-se interiormente com a falta do dinheiro que lhe permitiria um viver mais desafogado.
Na taberna, o recatado Tó assegura o seu lucro, que é como quem diz em bom português: orienta-se. Quando a noite já vai longa, e os clientes já estão tão alterados que nem dão conta, mistura água no vinho. Os chouriços e queijinhos vêm dum talho vulgaríssimo da cidade mais próxima, mas o Tó faz passar gato por lebre anunciando-lhes uma proveniência privilegiada, de uma terra bem mais a Norte, afamada pelos seus enchidos e queijos curados. Ninguém paga nada na taberna diariamente, o Tó aponta os gastos num caderno e faz contas com os clientes no fim do mês. Também aqui mete a unha, acrescentando umas parcelas aqui e ali para engrossar o rol. Mas ladrão que não é apanhado passa por homem honrado e o Tó é calado e não tem amigos, só clientes; os seus únicos amigos são o Deus que vê tudo lá de cima, o seu padre confessor e o dinheiro na algibeira. Por este andar o Tó vai morrer rico, mesmo a tempo de deixar uma herança simpática aos filhos: é isto que o anima para enfrentar a luz da manhã, depois de ficar até tarde na taberna a expulsar os últimos bêbados. Com este modo sisudo de ser, acaba por gerar algumas antipatias.
Numa noite o Tó sai tão cansado que se esquece de trancar a porta da taberna. Não há inimigo que seja pequeno e este anda a observar o Tó há algum tempo, esperando a ocasião que faça o ladrão. Quando o Tó regressa de manhã encontra a caixa registadora vazia e, antes de ir à polícia, busca consolo junto do padre da aldeia que o ouve em confissão. Este não fica particularmente consternado nem com pena do nosso Tó e apenas lhe responde:
- Ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão
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