As pessoas, que aleatoriamente se persignavam nave afora, paravam às vezes ali por perto nalgum cumprimento domingueiro aos vizinhos ou numa calhandrice em sussurro, porque na casa de Deus não se devia apontar o dedo a ninguém, por mais pecador que fosse - com excepção do taberneiro, do merceeiro e do sapateiro, nem sequer o carteiro se safava.
Reuniam-se em pequenas rodas aqui e ali e, quando ficavam mais aqui, acabavam por reparar naquele canto meio escondido com um santo meio de banda. E não valia a pena tentarem ler a placa carunchosa: a conversa terminava sempre com alguém a perguntar Mas afinal quem é o Santo?
Como não lhe sabiam o nome, as oferendas eram raríssimas. É bem de ver: quem é que no seu perfeito juízo dirige um pedido a um santo que não pode nomear? É toda uma oração para o galheiro, o mais certo é não ser atendida pelo Altíssimo...
As gentes inclinavam-se assim para os santos em montra no altar, muito mais vistosos e bem postos, iluminados pelos enormes círios que o sacristão não deixava apagar.
Num desses fins de tarde de Inverno, em que o largo se enchia do cheiro das lareiras e dos borralhos, o Lobato viera pedir perdão pelos seus pecados. Eram tantos, mas tantos!, que ele nem sabia por onde começar. Palpitava-lhe que uns vulgares Padres-Nossos e Avé-Marias não seriam suficientes.
Não se via vivalma. Lobato percebeu que a hora da confissão já terminara. Levantou-se devagar. Tinha de ir ao encontro do Furtado: estava quase na hora. Levou as mãos aos bolsos. A mão esquerda sentiu o frio da navalha, enquanto a direita apalpava o envelope.
As sombras ocupavam cada vez mais os esconsos da igreja, em contraste com a luz das velas crepitando junto ao sacrário. Lobato olhou lentamente para o seu lado esquerdo e deu com os olhos numa imagem em que nunca havia reparado. O santo, alquebrado, tinha um ar tão abandonado que até metade da tabuleta com a sua identificação caíra.
Meteu de novo a mão no bolso direito. O Furtado nem podia sonhar que aquele dinheiro existia. Sacou do envelope e, num gesto muito rápido, escondeu-o ao lado da caixa destinada às ofertas para o santo anónimo. Depois pensou melhor e optou por o disfarçar debaixo dos pés de barro do dito cujo.
Tocou de novo na navalha dentro do bolso que sobrava, deixando-o vazio. Agora sim, podia ir ao encontro do Furtado.
- Quando a esmola é demais o santo desconfia
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