Mais se assemelhava a um mundo paralelo, não foram as dúvidas expostas ao sol por falta de sombras. Por falta de sombras, tudo se exibia a nu, sem disfarces.
Era um mundo à margem cujas fronteiras se encontravam vagamente com os lugares onde as pessoas reais habitavam a normalidade.
Por isso, eram tão difíceis as trocas de visitas entre um lado e outro, cortesias à parte. Assim , para os que moravam para lá da divisão, todos os compartimentos que se encontravam ocupados do lado alheio se lhes afiguravam exíguos e irrespiráveis, uma sucessão de pequenas caixas todas iguais. As caixas tinham as mesmas dimensões e as mesmas cores e nada as distinguia entre si, além dos minúsculos códigos impronunciáveis que ostentavam.
Era essa a razão de preferirem morar do lado de lá. Só os outros, os inadapados, moravam lá.
As pessoas de cá não se aventuravam a transpor a linha divisória com receio de, depois, não conseguirem regressar. Queriam ser conscientemente de cá, convencidas de que era o local onde viviam que as fazia pessoas. Queriam continuar a ser pessoas com limites bem definidos. Queriam o vínculo, essa afectação que lhes conferia uma sensação de pertença estável.
Abdicavam, dessa forma, da profundidade de espírito, da arte do encontro, da surpresa e da entrega, da reciprocidade afectiva e da essência da partilha. Porque essas coisas acabariam por as distinguir umas das outras, uma vez que eram comportamentos raros e muito imprevisíveis.
As deslocações, se bem que não carecessem de prévia autorização, encontravam-se regulamentadas por um estranho código de silêncio que em silêncio cumpriam. Havia que permanecer dentro das caixas oficiais, não se contabilizando o número de vezes em que era necessário vir à tona para respirar: essa era uma acção impopular que convinha disfarçar.
Do lado de lá, ocorriam cenários proibidos compostos por golpes de sorte e trapaças das probabilidades que desnudavam os destinos erráticos e largamente irresponsáveis dos habitantes. Realmente era tudo tão para lá de lá, tudo para além da superficialidade do banal da zona oposta. Eram pessoas tão imperfeitas que, face a essa constatação, havia muito mais tolerância em relação aos erros que eram cometidos, apenas permitidos depois da fronteira.
Do lado de cá, até o próprio clima era constante. Constantemente nublado. E chegavam repetidos relatos de oportunidades desperdiçadas e falhanços temerários. Pretendia-se, com isso, educar os indivíduos pelo exemplo contrário.
- Os erros de uns são lições de outros