Provérbios Provados noutras casas:

quinta-feira, 4 de setembro de 2025

Provérbio provado hospedado

A Eva era prima do Miguel. Não o era por afinidade directa: as avós de ambos é que haviam sido, elas sim, primas direitas. 
Ou seja, a Eva não pertencia ao núcleo familiar do Miguel, mas não era uma prima demasiado afastada, o que o tinha obrigado a dar-lhe a mão num caso de necessidade e era, aquele caso, caso para isso.

A bolha imobiliária rebentara como um fogo de artifício, primeiramente lento e espaçado e depois firme e prolongado. 
Pequenos foguetes irrompiam, estalando aqui e ali numa progressão matemática, enchendo os bairros do cheiro a pólvora seca. Começavam por ser estalidos discretos mas, à medida que o fogo se desenvolvia, iam fazendo mais e mais barulho e produzindo mais e mais impacto.
Os habitantes foram então atirados para as periferias; periferias, essas, que acabariam também um dia por rebentar.

Foi no decorrer desta espécie de estágio para o estado de sítio que a Eva passou a ocupar o quarto de hóspedes vago em casa do primo.
Vago é como quem diz: a divisão funcionara, até àquela data, como quarto da tralha. Metade da dita tralha foi deslocada para a garagem; a outra metade, de utilidade ainda mais duvidosa, foi deitada no lixo pelo Miguel sem dó nem piedade.
Mas a Dorinda acarinhava aquele montão de objectos: afinal era a sua tralha!

Após ter assistido ao despejar dos seus balangandãs nos contentores, preparou-se para tomar a Eva de ponta ainda nem a rapariga era chegada.
No primeiro dia, rebolou excessivamente os olhos mal a viu. Foi pouco amável para a Eva. No segundo foi antipática e no terceiro desabrida.
A outra não se mancava, virando lentamente as costas às investidas da mulher do primo. Recolhia-se ao quarto de hóspedes onde ficava, pelo menos, dez minutos a alisar as pregas da colcha para acalmar.

Veio o final do Inverno, depois chegou a Primavera e, na altura em que as primeiras flores roxas dos jacarandás começavam a atapetar as ruas, a Eva pediu para falar em privado com o primo.
Foram até ao jardim. Eva lamuriava-se, atemorizada com o preço das rendas que, desde o primeiro disparo, nunca mais tinham parado de aumentar.
Sabes o Ezequiel?, e ia inquirindo o primo, Foi despejado, vê lá tu! E, com ele, também a namorada e o Pavlov, o husky siberiano. Tens de os ajudar, primo, afinal de contas pertencem à nossa família!, enquanto o Miguel se interrogava se se veria forçado a recolher a parentela em quinto grau.

Dorinda exasperou-se quase até ao fanico. Não pode ser, Miguel, qualquer dia até a tua avó morta quer vir morar aqui connosco! O marido suspirou, encolheu os ombros e foi atender a campainha.
Entraram os primos de mala e cuia com o seu cão asmático pela trela. A dona da casa engoliu em seco. Não disse palavra.
A antipatia para com Eva fora afinal uma brincadeira de crianças: agora a Dorinda era ostensivamente silenciosa enquanto os olhos lhe chispavam. Sentia-se que a qualquer momento podia entrar em erupção.

Ainda assim, aguentou todo o fim de semana sem piar. Mas na segunda-feira despertou irada. Enervou-se mais ainda ao vislumbrar pequenos tufos de pêlo de cão que esvoaçavam por toda a casa. A sua casa!
Expulsou os últimos intrusos aos brados, aproveitando também para encaminhar a Eva para a porta de saída. Os primos mal tiveram tempo de reunir os seus pertences durante a fuga.

Bateu estridentemente com a porta da rua. Inspirou muito fundo para depois despejar todo o ar numa nortada. Virou-se então para o marido: Miguel, os hóspedes são como o peixe, a partir do terceiro dia começam a cheirar mal.


- Hóspede e pescada aos três dias enfada 

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