Provérbios Provados noutras casas:

sábado, 19 de setembro de 2020

Provérbio provado bocejado

O António passava dias ou noites - e por vezes dias e noites, quando fazia dois turnos seguidos - enfiado no cubículo diminuto do parque de estacionamento onde era segurança. Tendo de vigiar um circuito fechado de televisão onde via os carros chegar e partir, nem sempre conseguia estar atento a todas as movimentações que as viaturas, quais formigas no ecrã, efectuavam. Ao invés, à noite pouca actividade decorria nos pisos do parque e o António pestanejava várias vezes com força para não se deixar adormecer. 

Começara a trabalhar como vigilante daquele parque mal concluíra o liceu, mas não pôde prosseguir os estudos como idealizara. A sua ideia era estar ali só dois ou três anos para poupar dinheiro para a faculdade, mas logo a seguir Etelvina engravidara e depois de ter dado à luz os gémeos tivera uma depressão pós-parto. Quando estava ainda a amamentar os dois bebés, engravidou mais uma vez, desta feita de uma menina que pouco mais de um ano de diferença tinha dos irmãos. Nova depressão, agora tão profunda que Etelvina esteve sete anos sem reunir condições para trabalhar. 

Claro que os sonhos de um dia voltar a estudar caíram por terra e o António passou esses anos a fazer turnos duplos, contas até ao último cêntimo com a conta bancária sempre à pele e marmitas à pressa com os restos que encontrava no frigorífico quando a Etelvina arranjava forças para cozinhar. 

De passar tanto tempo no parque, já ia conhecendo os carros e os seus habituais ocupantes, na sua maioria trabalhadores das empresas daquele prédio de escritórios. Havia uma zona em particular, junto ao acesso aos elevadores, que o António e os colegas - que só via de relance na mudança de turno - tinham baptizado de Triângulo dourado. Era o lugar de estacionamento dos cargos dirigentes e era ocupado por carros de alta cilindrada, que custavam mais do que o que o António auferia ao fim de um ano de turnos a trabalhar fins de semana e feriados. 

Tal como o do Dr. Pimenta, o administrador que ocupava todo o último andar do edifício, que se fazia transportar num Maserati topo de gama com os estofos em couro. Era frequente virem entregar-lhe refeições dos restaurantes mais caros da cidade; o António indicava aos empregados a entrada para os ascensores, sentido o aroma das iguarias que se evadia das caixas de comida e perfumava o cubículo por segundos. Depois olhava com tristeza a sua marmita, enquanto sentia o estômago colar-se-lhe às costas e o sono invadir-lhe os membros. 

Numa dessas tardes, o Dr. Pimenta, contrariamente ao que era costume, desceu após o almoço à garagem à procura de umas chaves suplentes. Dirigindo-se ao António, abordou-o com condescendência, depois de um arroto que lhe saiu muito mais sonoro do que desejaria:

- Preciso com urgência das chaves 33A, mas resolvi vir eu mesmo buscá-las para esticar as pernas a seguir ao almoço! Que é esse longo bocejo, homem? É fome, é sono ou é ruindade do dono? 


- A fome boceja, a fartura arrota 

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