Provérbios Provados noutras casas:

terça-feira, 31 de março de 2020

Provérbio provado rimado - DCCLXXIII

Quem come tudo o que apanha
Vai acabar um monte de banha
É uma pena que a comida
Não seja dada mas adquirida

E se não paga o que então come
Bem mais cara lhe sai essa fome
Diz o povo quem come fiado
Amanhã vai pagar dobrado

sábado, 28 de março de 2020

Provérbio provado todo misturado

O David era um tipo tão culto tão culto que a primeira coisa que fazia quando acordava era abrir o frigorífico e sacar uma enciclopédia que engolia à pressa. Após o pequeno almoço, arrotava alto e bom som, enfartado de tanta sabedoria, e ia imediatamente lavar os dentes pois, como também era vaidoso, não queria sair à rua com pedaços de letras agarradas à cremalheira.
À noite, o seu grupo de amigos costumava reunir-se no café lá do bairro. Às vezes, para matar o tempo, faziam uma espécie de jogo que invariavelmente colocava o David no centro das atenções: propunham-lhe que descodificasse a origem e significado de determinadas expressões. Ele pigarreava para ganhar balanço e discorria longamente, dando-se ares de importante, convencido de que os amigos aceitariam como verdade toda e qualquer informação que debitava, não se preocupando em verificar a posteriori a credibilidade das suas fontes.
Certo serão, aborrecida já de descredibilizar as mais recentes afirmações do primeiro ministro, a Catarina soprou-lhe algo ao ouvido e silenciou os demais, aguardando todos que o David contasse mais uma das suas histórias...

Ora bem, meus caros, era uma vez um profeta muito popular entre o seu povo, visto que conseguia que uma sardinha alimentasse várias famílias, transformava água em vinho e pedras da calçada em ouro do mais fino quilate com um simples toque do dedo indicador.
Tendo-lhe sido pedido numa ocasião um milagre especialmente espectacular que demonstrasse a veracidade dos seus ensinamentos, o dito profeta ordenou que o monte Sinai caminhasse na sua direcção. Disse uma, disse duas, e o monte ficou mudo e quedo na paisagem como uma grande embalagem de plástico não reciclável, deixando o povaréu sobremaneira desiludido. É verdade, a montanha não se moveu nem um milímetro, mas uma sarça das redondezas explodiu num tal fogo que, por mais que ardesse, não se consumia. O profeta pediu então silêncio para melhor poder escutar a voz divina que, do meio das tórridas labaredas, lhe indicava os passos seguintes: Ó meu filho iluminado, sobe de imediato àquela montanha onde te ofertarei duas placas com normas de procedimento para o povo. Ele assim fez e por lá se demorou quarenta dias e quarenta noites sem comer nem beber. Quando finalmente desceu encontrou toda a gente a dormir; sacudiu-os um por um e assegurou-lhes que a misericórdia de seu pai era de tal forma profunda que, ao impedir que o monte se deslocasse, os tinha poupados a todos de serem esmagados pela enorme massa de terra. Depois, para disfarçar o ter-se esquecido de trazer consigo as placas da lei, foi caminhar sobre as águas do mais próximo mar, arrancando em redor ohs de admiração.
E agora, queridos amigos, quem adivinha qual é a expressão? Vá lá, Catarina, não te descaias... Pois é, esta é muito fácil, está mesmo a ver-se!

- Se a montanha não vai a Maomé, vai Maomé à montanha

Provérbio provado rimado - DCCLXXII

Se bebes bagaço e tens whisky de malte
Para tolo nada tens que te falte
Do mesmo modo em tendo fois gras
Crês que é o pior petisco que há

Assim se vê que não és refinado
Com o nó da gravata desalinhado
Já devias saber que os chinelos
Calçados fora da praia nem vê-los

Ouve o que te digo do meu pedestal
Pratica ser distante e formal
Não mostres os dentes sem necessidade
Fora do teu círculo de amizade

Aprende que para sempre não duro
Em meu redor ergo este muro
Se te parece que sou sobranceiro
É a vantagem de ser cavalheiro

Só não perguntes se feliz sou
Respostas profundas eu não te dou
Só finjo tanto como os demais
Pois nisso somos todos iguais

Provérbio provado rimado - DCCLXXI

Tal como um lince a olhar
Prescruto até ao fundo
Todo o que me quer enganar
E há tanto disso no mundo

Com faro de perdigueiro
Detecto a muitas milhas
O que parece um bom cheiro 
Recheado de armadilhas

Um Adónis ou Apolo
Muito bem apessoado
Aqui pode não ter colo
Se for pulha disfarçado

quinta-feira, 26 de março de 2020

Provérbio provado rimado - DCCLXX

Quem a água pé não aguenta
É melhor que beba água benta
Se não gosta do café encorpado
Então que peça um descafeinado

Se torce o nariz ao ver um éclair
Ou qualquer doce de colher
Pois que use ao invés adoçante
E fique cada vez mais elegante

De santos e sonsos manter a distância
É melhor ficar na ignorância
Vêm de mansinho se batem à porta
Voam baixinho como mosca morta

Provérbio provado rimado - DCCLXIX

Na tropa os comandantes
Diziam lá nas paradas
A todos os iniciantes
Aqui só há camaradas

Não chamem a ninguém colegas
É o que vem nas minutas
Não queremos cá gente piegas
E colegas são as putas

Provérbio provado rimado - DCCLXVIII

Ir à caça de gambozinos
É uma tarefa gira
Só que é uma mentira
Que se conta aos meninos

Com um pau numa mão
E na outra um saco
Que seja bastante opaco
Para não permitir evasão

É preciso também fazer
Um som estranho na garganta
Mas não alto porque espanta
Os bichos que se vão esconder

Depois de tanta trabalheira
Regressam de saco vazio
E já quase de noite com frio
Lhes contam que é brincadeira

Porque gambozinos não há
Embora lhes tivessem dito
Que era um bicho esquisito
E até um pouco pachá

Quando os meninos crescerem
Hão-de igual caça inventar
Que faça os seus filhos brincar
Até a piada perceberem

Provérbio provado num verso branco - LXXV

Sempre um novo espanto quando a manhã acorda
Mais um dia que dilui um pouco o que ontem foi
Um dia que prepara esse futuro cada vez mais perto

Nada como um dia após o outro
É o que transforma a esperança numa verdade

Provérbio provado rimado - DCCLXVII

Até ensinava a missa
Ao padre lá da aldeia
Mas o Zé tinha preguiça
Depois da barriga cheia

Cada vez que ele botava
A sua bela faladura
Toda a aldeia parava
Até a cavalgadura

Só que não rodava um cesto
E nem um chapéu sequer
Ninguém esboçava um gesto
Que o fizesse enriquecer

Então de barriga vazia
Percebeu que mais vale emigrar
Foi para uma cidade arredia
Onde deixou de pregar

Provérbio provado rimado - DCCLXVI

Entrámos com o pé direito
Para ser um ano perfeito
Comemos as doze passas
Embora fossem escassas

Mas este ano está a ser
Uma bela merda a valer
Ficámos em casa presos
A fim de sairmos ilesos

Por isso ouçam o que digo
É bom conselho amigo
Não esqueçam no ano que vem
Pôr o pé esquerdo também

Provérbio provado rimado - DCCLXV

A São do tinto gostava
Mesmo do de pacote
Com esse não temperava
Comida mas a epiglote

Bebia um gole e estalava
A língua com um som esquisito
O néctar apregoava
Era o bom e o bonito

Um dia quando a São estava
Na taberna já sem dinheiro
Percebeu que se acercava
Um distinto cavalheiro

O dono conversa travava
Limpando o balcão com um pano
Ricardo assim lhe chamava
Como se fosse o seu mano

Um copo disponibilizava
Gabando o vinho da casa
Reparando que a São arrastava
Àquele cliente uma asa

Ricardo com as mãos negava
O tinto e a Conceição
Enquanto assim alegava
O bom vinho escusa pregão

Provérbio provado num verso branco - LXXIV

Levo os braços abertos num ensaio de nuvem
Levo dedos que apontam cada exclamação estelar
Levo para essa altura os gestos que aqui reprimo
Levo-me leve em suspensão ávida de luz e calor
Levo-me pronta para tudo só não serei um sinal proibido
Não é o sol que faz a sombra
É o objecto entre ele e a terra

quarta-feira, 25 de março de 2020

Provérbio imprudente

Já não lhe bastava a janela que ia ficando cada vez mais pequena à medida que os dias se sucediam. Desligou a televisão que debitava notícias do apocalipse há três semanas ininterruptamente. Atirou com estrondo com todas as portas que se lhe atravessaram no caminho. Na última, a do prédio, fez estalar um vidro, mas André nem olhou para trás para verificar o estrago. Uma vez na rua inspirou o mais fundo que pôde, tantas vezes quantas pôde aspirar o ar levemente primaveril.
Sim, fugia daquelas quatro paredes, daquele André confinado, do isolamento a que o tinham obrigado, da quarentena imposta pelos telejornais. Largou a correr pelas ruas desertas; coisa inédita: na cidade encontrar-se mais árvores do que pessoas. As poucas que se viam caminhavam apressadas, de máscara e luvas, acompanhando algum cão mais ou menos incontinente que as forçava a saídas regulares, após o que regressariam às suas casas onde esperariam com prudência que amainasse a hecatombe.
O André não quis saber de semáforos ligados nem de sirenes policiais: galgou escadas e virou esquinas, numa correria desenfreada plena de superfícies de contacto.

- A prudência espera, a imprudência foge

terça-feira, 24 de março de 2020

Provérbio provado rimado - DCCLXIV

Ensinei-lhe tantas piadas
Tão patetas e desbocadas
Num ápice as reproduziu
E uma multidão seduziu

Começou então a inventar
Anedotas de gargalhar
Bem sagazes e muito certeiras
Entretinham plateias inteiras

Criou tal manancial
Que se tornou logo viral
Ó Deus um monstro criei
Essa ideia não imaginei

Provérbio provado rimado - DCCLXIII

O malfadado vírus Corona
Deixa-nos todos obcecados
Os nossos passos condiciona
De forma a ficarmos tão isolados

Sobre todos paira o temor
Temos de o Covid evitar
Pois prevenir é sempre melhor
Que depois ter de remediar

quinta-feira, 12 de março de 2020

Provérbio provado num verso branco - LXXIII

Há um momento quando a chuva chega
Que é o momento em que a chuva chegou
As pessoas entram apressadas nos locais sacudindo os pingos
E dizem confiantes É o tempo dela
Mesmo quando a chuva tardou mais um pouco
Teimando em apenas perfumar os campos
Com o veranil cheiro a terra molhada

É assim que tudo se comporta na natureza
A chuva o sol as frutas
Tudo chega no tempo certo
Dá tempo ao tempo ensinam as avós
(Por natureza leia-se vida)

Provérbio provado rimado - DCCLXII

A escrever sou repentista
Sou esse tipo de artista
Se é bom o resultado
Digam vocês desse lado

Que sempre ouvi dizer
Com razão quer-me parecer
Que isso de depressa e bem
Afinal não faz ninguém

Provérbio provado procrastinado - II

O Filipe era preguiçoso. Quer dizer, não era bem isso: ele adiava continuamente. Quer dizer, não era bem isso: quando o Filipe percebia que não estava com a disposição correcta para fazer alguma coisa bem feita, ele preferia deixar para o dia seguinte. Quer dizer não era bem isso porque, além disso ser uma desculpa do mais esfarrapado que pode haver, existia uma palavra no dicionário que definia o seu comportamento sem tirar nem pôr: o Filipe procrastinava. Por isso, a frase que ele mais ouvia desde menino era:

- Não deixes para amanhã o que podes fazer hoje

Provérbio provado rimado - DCCLXI

Lá vou conhecendo fulanos
Que são extremamente mundanos
Com a língua bem afiada
Para toda e qualquer tirada

Mas já lhes conheço as manhas
E as maningâncias tamanhas
Adivinho as perguntas possíveis
Pois são deveras previsíveis

O discurso bem espremido
Não dá nem meio copo bebido
Se me querem surpreender
Devem muitos bifinhos comer

Ou sou eu que acredito em pouco
Ou há cada vez mais homem louco
Posso ter encontros em barda
Mas não são grande espingarda

(Ilustração: Junkhead)