Provérbios Provados noutras casas:

quarta-feira, 30 de setembro de 2020

Provérbio provado rimado - CMXLIV

Põe-te em campo ó meu menino 

Não permito que sejas cretino 

Cuida dos teus afazeres caseiros 

Que aqui não se limpam traseiros 


O tempo em que só as mulheres 

Punham na mesa os talheres 

É coisa do século passado 

Não te deixo ser descuidado 


Obedece à mãe querido filho 

Poupa-nos de muito sarilho 

Pois cá na nossa choupana 

Não é casa da mãe Joana 





Provérbio provado rimado - CMXLIII

Quando tu quiseres mentir 

Fala do tempo que há-de vir 

É argumento que não convence 

Que o futuro a Deus pertence 



Provérbio provado rimado - CMXLII

O hóspede é como o peixe 

Aos três dias já cheira mal 

E se houver quem sempre deixe 

Ele abusa de ser comensal 


Pretende de borla comer 

Sem dar colaboração 

Quem o faz desaparecer 

Ou contribuir com tostão? 


Ocupa a cama ou o sofá 

Pernoita em qualquer lado 

Tem muita falta de chá 

Só quer aliviar o costado 



terça-feira, 29 de setembro de 2020

Provérbio provado ralhado

Na casa da numerosa família Almeida, o patriarca é que dava os dias santos. Como sabia muito bem o que queria, e o tinha tão claro como a água, também se julgava certo do que necessitavam os demais; como tal, não tinha qualquer receio de disparar ordens à esquerda e à direita até que todos os seus desejos se cumprissem. 

A prole andava direitinha como um fuso, pois sabia que ao mínimo deslize lá vinha um ralhete encorpado do encorpado pai. O dito queixava-se muitas vezes que não era fácil governar aquela tropa: amiúde os filhos pensavam saber mais do que quem efectivamente mandava. Mas ele tinha uma capacidade de comando inata que o fazia ser respeitado e até querido quando se punha em pose de ordenança. 

Toda a família Almeida estava assim sob o jugo daquele personagem masculino, que geria as empresas e as propriedades e também os conflitos familiares um pouco à moda do rei Salomão. 


- Casa que não é ralhada não é bem governada 

segunda-feira, 28 de setembro de 2020

Provérbio provado rimado - CMXLI

O Jorge é um sujeito 

Que é um pouco imperfeito 

Tem uma figura engraçada 

Parece ter grande pancada 


Tem bigodes retorcidos 

E os dedos bem compridos 

Solta sempre uma laracha 

Assim bem fora da caixa 



Provérbio citado (PIRES)

«Está assente, não se fala mais nos teus livros. Conheces a Pàzinha Soares?»

«Quem?», pergunto

«A Maria da Paz Soares. Uma que escreve. Todos os anos publica um livro de poemas e todos os anos muda de amante que é para manter os cornos do marido em forma. É público, não há quem não saiba.»

Agarro-me ao nome:

«Maria da Paz…»

«Conheces com certeza. Não há ninguém que não conheça essa cabra.» (Um momento: é aqui que Tomás Manuel irá jogar um dos seus passatempos favoritos, o da cabra e rédea curta). «Poesia de cama, » continua ele, «estás-me a perceber? Poesia para essas literatas das faculdades. Por isso é que se eu tivesse uma filha havia de ser feita para casar. Não acreditas? Olá. E ai dela se pusesse os cornos ao marido, que era o mesmo que mos pôr a mim. Positivamente. 

- Para a cabra e a mulher, corda curta é que se quer.

»


In O delfim - José Cardoso Pires

domingo, 27 de setembro de 2020

Provérbio provado rimado - CMXL

Para ti palavras não tenho 

Pois nem sei o que te diga 

Por vezes nem me contenho 

Por seres tão boa amiga 


É grande a admiração 

És uma mulher e pêras 

Tens um enorme coração 

E dos outros nada esperas 


Não cobras a amizade 

És sensata e discreta 

Por isso dá mais vontade 

Da tua presença completa 


E além disso és giraça 

Não tens ponta de azedume 

Sabes que a beleza sem graça 

É uma violeta sem perfume? 


Mas tu és uma linda flor 

Igualmente muito boa mãe 

Que sabe dar aos filhos amor 

Óptimos conselhos também 


Ou seja só sei bem dizer 

Nada de mau a apontar 

És a minha amiga mulher 

Que chego até a invejar 


É uma inveja das boas 

Por te querer assim tanto 

Pois és daquelas pessoas 

Que considero com espanto 


Nem sei o que eu faria 

Se não te tivesse na vida 

Decerto infeliz seria 

Sem ti ao meu lado querida 



Provérbio provado rimado - CMXXXIX

Pico o ponto antes da hora 

Uns dez minutos não falho 

Sou uma responsável senhora 

Que adora o seu trabalho 


Lá na minha repartição 

Com gente estranha convivo 

E o chefe que nem é patrão 

É um sujeito bem altivo 


Contudo dou-lhe os bons dias 

Tal como dou a toda a gente 

Perdoo-lhe as tristes manias 

E vou trabalhar diligente 


Todo o dia concentrada 

Só páro para almoçar 

Sempre em papéis afundada 

Nos dossiers a rebentar 


Nem sequer tomo café 

Como dos demais é doença 

Que não sabem mexer um pé 

Sem pedir ao outro licença 


Cambada de preguiçosos 

Só querem saber do salário 

Personagens astuciosos 

Não preenchem um formulário 


Perdem tantos requerimentos 

E das suas funções se esquecem 

Não são funcionários atentos 

Um aumento não merecem 


Eu podia ter melhor soma 

Por ser uma pessoa constante 

Mas ninguém me diz Olha toma 

Pois não ganhas o bastante 



Provérbio provado rimado - CMXXXVIII

Estive com a Lisa a jantar 

Foi a segunda vez que a vi 

Mas estava com diferente ar 

Do que o dia em que a conheci 


Bem disposta e sorridente 

Dispersou qualquer amargura 

A Lisa estava bem mais contente 

Do que estava na outra altura 


Ao ditado não dou pois razão 

Embora saiba o que significa 

Pois nem sempre a primeira impressão 

É aquela que connosco fica 



Provérbio provado rimado - CMXXXVII

O André quando afirma prova 

Mata a cobra e mostra o pau 

Não inventa coisa nova 

A contentar não é mau 


Dúvidas ele não deixa 

Sobre as suas acções 

Que o André não se queixa 

Delas terem implicações 


É tudo preto no branco 

Sem linguagem figurativa 

O André é um tipo franco 

Não tolera qualquer expectativa 



Provérbio provado rimado - CMXXXVI

Tens cara de segunda feira 

Sem ânimo e força nenhuma 

Nas folgas és galhofeira 

Hoje estás tão chocha em suma 


Amanhã terça depois quarta 

Vais somando hora a hora 

Chegando a quinta estás farta 

Epá aguenta e não chora 



sexta-feira, 25 de setembro de 2020

Provérbio provado rimado - CMXXXV

O Zeca está sempre a rir 

Graça a tudo ele acha 

Leva a vida a curtir 

E a arreganhar a tacha 


Mas quando está triste o Zeca 

É bem fácil de perceber 

A gargalhada é seca 

Fica perto de esmorecer 


Passa-lhe logo depressa 

Que o Zeca não é de tristezas 

Enfim o sorriso regressa 

E alegra as redondezas 



Provérbio provado rimado - CMXXXIV

Abre lá a torneira 

Vem mais um ditado 

De qualquer maneira 

Irá ser provado 


Sai uma expressão 

É o que se arranja 

Aqui mesmo à mão 

Que rimar é canja 



Provérbio provado rimado - CMXXXIII

Serpente que a morder os dentes dobra 

Só serve mesmo para banha da cobra 

Remédio que cura todo e cada mal 

Conversa ardilosa que não tem igual 


(Ilustração: @catarinaqualquercoisa

www.instagram.com/catarinanasnuvens) 






Provérbio provado rimado - CMXXXII

Viagem de sonho é uma brincadeira 

Que dá pesadelos com a carteira 

Quiseram impingir-me um pacote 

Contei os trocos andei num virote 


O Taiti não é a minha praia 

Não me dou com gente dessa laia 

Sou pobretanas não sou nada rica 

Vou mas é para a Costa da Caparica 



Provérbio provado num verso branco - XCV

Toda a minha vida um circo gratuito 

Corda bamba estendida mas não esticada 

Pouco firme algo frouxa disfuncional 

Eu um volatim ora andando ora dançando 

Em deslocações evoluções periclitantes 

Mudando de postura e de opinião a cada passo 

Numa situação instável difícil de controlar 



Provérbio provado rimado - CMXXXI

A Júlia é mulher de janela 

Diz de todos e todos dela 

Logo de manhã ao postigo 

Fala mal até do amigo 


Nas tardes de muito calor 

A Júlia arranja dissabor 

E em noites de lua cheia 

É a porta voz lá da aldeia 


Mas que grande coscuvilheira 

Não há maior calhandreira 

A Júlia é uma língua de trapos 

Deixa qualquer um em farrapos 



Provérbio provado rimado - CMXXX

Quando vendemos uma mentira 
De que não temos necessidade 
E a apresentamos como coisa gira 
Isso chama-se publicidade 

Anúncio de lebre que é um gato 
Hotel de luxo estrelas tem três 
Slogans compostos com aparato 
Imagens bonitas por sua vez 

A publicidade é sempre enganosa 
Nunca usa de toda a franqueza 
Tem sempre uma saída airosa 
E não põe as cartas na mesa 


Provérbio provado rimado - CMXXIX

Busca amizade do teu igual 

Se tu és honrado e leal 

Mas busca também do teu diferente 

Pois assim és irreverente 


Que ser só amigo do teu amigo 

É fácil e não oferece perigo 

Mas ser companheiro do discordante 

Já não é tão abundante


É mais raro e tem mais valor 

Estar ao lado do delator 

Passará a ser teu camarada 

Dos que pagam uma jantarada 


Sê cortês e um tipo gregário 

Sem laivos de autoritário 

Terás amizades pela vida inteira 

E apoio de toda a maneira 



quinta-feira, 24 de setembro de 2020

Provérbio provado rimado - CMXXVIII

Era uma vez um poeta 

Que tinha uma rima incompleta 

Sabia como começar 

Mas não como terminar 


Pensou num ditado do povo 

Não era nada de novo 

Quis dar-lhe um final sonante 

Que parecesse importante 


Ficou um pouco aflito 

Escolheu um provérbio bonito 

Avançou lesto e ligeiro 

Para o fim ser inteiro 


Ser poeta traz sofrimento 

E um pouco de atrevimento 

E a tudo se pode atrever 

Quem tudo sabe sofrer 



quarta-feira, 23 de setembro de 2020

Provérbio provado rimado - CMXXVII

Casamento é pão partilhado 

É ter medo e ser consolado 

É carícia na escuridão 

Ter sempre uma mão à mão 


Casamento é uma viagem 

Que tem sempre a mesma paisagem 

Mas também é uma descoberta 

Se a mente estiver desperta 


A independência é igual 

Mas a dependência é normal 

Ambos vivem um jogo comum 

Quando o egoísmo é nenhum 


Uma coisa é inevitável 

Para a relação ser estável 

Ou a união lá se arrasa 

Pois quem casa quer casa 



Provérbio provado rimado - CMXXVI

Quem jura e não atende 

Que um dia qualquer aparece 

Depois esquece o compromisso 

E o erro não esclarece 


Fica sempre mal visto 

Deixa uma má impressão 

Se deixou outro à espera 

É falta de educação 


Quem promete à quarta 

E depois vem à quinta 

Não faz nenhuma falta 

Que assim se sinta 



Provérbio provado rimado - CMXXV

O Tó quer uma rapariga 

Porque de estar só tem fadiga 

Tem imensa curiosidade 

De ter mais do que uma amizade 


Quer enxotar o seu passado 

E ser de alguém namorado 

Crê que está mesmo na altura 

Anda pelas ruas da amargura 



Provérbio provado rimado - CMXXIV

Atacou-nos uma pandemia 

Que é uma grande arrelia 

Quem nos há-de acudir? 

Iremos todos sucumbir? 


Para quem no além crê 

Que reze para ver se Deus vê 

O que cá em baixo se passa 

Enquanto o Covid grassa 


Nas suas orações peça 

Que a divindade não esmoreça 

E rogue assim Ó Cristo 

Anda cá baixo ver isto! 



Provérbio provado rimado - CMXXIII

Quando era celibatário 

Achava um mal necessário 

Estava bem na minha solidão 

Resguardava o meu coração 


Não advogo as instituições 

E todos têm opiniões 

Mas eu amo a minha mulher 

É só dela que quero saber 


Ela é o paraíso na vida 

A minha mais que querida 

Ela é na terra o meu céu 

Perto dela tão feliz sou eu 


Agora que sou bem casado 

Não me quero ver divorciado 

É ocupação a tempo inteiro 

Sou um marido verdadeiro 


Estamos tão contentes os dois 

Que não pensamos no depois 

O nosso é um amor profundo 

É o que se leva deste mundo 



Provérbio provado rimado - CMXXII

Não deites tudo para o lixo 

Como se tivesse bicho 

Pois poderás aproveitar 

Muita coisa reutilizar 


Missangas e antigos botões 

Têm várias utilizações 

Caixas velhas e molduras 

Servirão noutras alturas 


Com alguma criatividade 

E até um pouco de vontade 

Consegue educar-se o povo 

Porque do velho se faz novo 



Provérbio provado rimado - CMXXI

É o mês do solstício 

Ao arrepio é propício 

Os dias são mais curtinhos 

Estão gelados os caminhos 


Só apetecem lareiras 

Aquecedores e caldeiras 

Porque no mês de Dezembro 

Treme de frio cada membro 



Provérbio provado num verso branco - XCIV

As sombras são tão belas quanto a luz 

O gelo tão intenso quanto o fogo 

As coisas mais bonitas nem sempre as mais evidentes 


No aparentemente feio há candura 

No que é belo também há mágoa 

Quem quer colher rosas deve suportar os espinhos 



terça-feira, 22 de setembro de 2020

Provérbio provado rimado - CMXX

Tu és o meu namorado 

Não o digo com enfado 

Pronuncio-o com orgulho 

E até com algum barulho 


Porque com frontalidade 

É mais que uma amizade 

E é próprio de quem ama 

Ir com o outro p'rá cama 


Já sabes que sou muito intensa 

A falar demais sou propensa 

Comigo é ou vai ou racha 

Ou arrebenta a tampa da caixa 



sábado, 19 de setembro de 2020

Provérbio provado rimado - CMXIX

Cabelo com gel para trás penteado 

E fato cinzento tão bem engomado 

Sapatos limpinhos que até reluzem 

Que é importante todos deduzem 


Com gravata e canudo de doutor 

Muito bem parece o impostor 

Assina DR nos cheques pois claro 

O curso tirou na farinha Amparo 


Tantos por aí sabichões de matilha 

Com um conhecimento de pacotilha 

Entoam estribilhos repetem chavões 

São tantos que andam aos encontrões 



Provérbio provado rimado - CMXVIII

Quem está no convento sabe melhor 

A hora da missa que diz o prior 

E quem conhece o fundo da panela 

É pois a colher que mexe nela 


Por isso não adianta adivinhar 

O que com os outros se está a passar 

O mais das vezes um sorriso lindo 

Esconde afinal sofrimento infindo 


Lembro-me do que dizia o escritor 

Aguenta amigo que aí vem pior 

Porque se é para dar um conselho 

Conversa de chacha não vale um pentelho 


Interessa sim marcar só presença 

Mas não maçar pedir logo licença 

Porque dizer Sei o que estás a sentir 

É um sinal de que está a mentir 


Palavras a mais caem sempre mal 

Se ditas numa linguagem formal 

E o que prevalece afinal de contas 

É o modo como se seguram as pontas 



Provérbio provado bocejado

O António passava dias ou noites - e por vezes dias e noites, quando fazia dois turnos seguidos - enfiado no cubículo diminuto do parque de estacionamento onde era segurança. Tendo de vigiar um circuito fechado de televisão onde via os carros chegar e partir, nem sempre conseguia estar atento a todas as movimentações que as viaturas, quais formigas no ecrã, efectuavam. Ao invés, à noite pouca actividade decorria nos pisos do parque e o António pestanejava várias vezes com força para não se deixar adormecer. 

Começara a trabalhar como vigilante daquele parque mal concluíra o liceu, mas não pôde prosseguir os estudos como idealizara. A sua ideia era estar ali só dois ou três anos para poupar dinheiro para a faculdade, mas logo a seguir Etelvina engravidara e depois de ter dado à luz os gémeos tivera uma depressão pós-parto. Quando estava ainda a amamentar os dois bebés, engravidou mais uma vez, desta feita de uma menina que pouco mais de um ano de diferença tinha dos irmãos. Nova depressão, agora tão profunda que Etelvina esteve sete anos sem reunir condições para trabalhar. 

Claro que os sonhos de um dia voltar a estudar caíram por terra e o António passou esses anos a fazer turnos duplos, contas até ao último cêntimo com a conta bancária sempre à pele e marmitas à pressa com os restos que encontrava no frigorífico quando a Etelvina arranjava forças para cozinhar. 

De passar tanto tempo no parque, já ia conhecendo os carros e os seus habituais ocupantes, na sua maioria trabalhadores das empresas daquele prédio de escritórios. Havia uma zona em particular, junto ao acesso aos elevadores, que o António e os colegas - que só via de relance na mudança de turno - tinham baptizado de Triângulo dourado. Era o lugar de estacionamento dos cargos dirigentes e era ocupado por carros de alta cilindrada, que custavam mais do que o que o António auferia ao fim de um ano de turnos a trabalhar fins de semana e feriados. 

Tal como o do Dr. Pimenta, o administrador que ocupava todo o último andar do edifício, que se fazia transportar num Maserati topo de gama com os estofos em couro. Era frequente virem entregar-lhe refeições dos restaurantes mais caros da cidade; o António indicava aos empregados a entrada para os ascensores, sentido o aroma das iguarias que se evadia das caixas de comida e perfumava o cubículo por segundos. Depois olhava com tristeza a sua marmita, enquanto sentia o estômago colar-se-lhe às costas e o sono invadir-lhe os membros. 

Numa dessas tardes, o Dr. Pimenta, contrariamente ao que era costume, desceu após o almoço à garagem à procura de umas chaves suplentes. Dirigindo-se ao António, abordou-o com condescendência, depois de um arroto que lhe saiu muito mais sonoro do que desejaria:

- Preciso com urgência das chaves 33A, mas resolvi vir eu mesmo buscá-las para esticar as pernas a seguir ao almoço! Que é esse longo bocejo, homem? É fome, é sono ou é ruindade do dono? 


- A fome boceja, a fartura arrota 

Provérbio provado rimado - CMXVII

Quando se caminha ao encontro 

Da tão inevitável velhice 

Corpo e mente estão em confronto 

E isso é uma grande chatice 


Às vezes o esqueleto está forte 

E o cérebro não acompanha 

Outras há que com um pouco de sorte 

É o corpo que está cheio de manha 


Há dias mesmo em que sinto 

Que estou a cair da tripeça 

Se disser que estou boa minto 

Estou fraquinha da cabeça 


Sinto-me a funcionar mal 

Como um carro avariado 

Mas sei que até é normal 

Todos somos assim um bocado 



Provérbio provado num verso branco - XCIII

Escrever poemas acerca de escrever poemas 

É pobre tema digno de lástima 

Quem a este expediente assim recorre 

Como pode denominar-se poeta com pê grande 

Com tão maus dedos para organista? 


De modo que versos que sobre versos versam 

Não valem um caracol ou um cigarro fumado 

O vento consome melhor o papel que se incendeia 

Do que o que não sabe travar o exagero na garganta 


O poeta com pê pequeno bate à porta da morte 

Já mais para lá do que para cá 

E cada palavra que insistentemente vai somando 

É mais uma pazada de terra por cima da tumba da sua poesia 



Provérbio provado rimado - CMXVI

Se as aves aos bandos pousam no mar 

É que a tormenta não deve tardar 

Aos barcos recolhem-se as redes vazias 

Que não é hora de boas pescarias 


É hora de bater em retirada 

Até à tempestade estar amainada 

Enquanto isso só se pode rezar 

Pois quem anda no mar aprende a orar 



Provérbio provado rimado - CMXV

A Maria é novata na loja 

Mas caiu no goto à patroa 

Vende mais proteínas de soja 

Do que as colegas vendem broa 


Muita sorte de principiante 

À Maria pode-se atribuir 

Ela já se crê tão importante 

Quer uma comissão auferir 


A patroa sorri e reflecte 

A Maria não tem um atraso 

É uma empregada que promete 

Tem calma vou pensar no teu caso 



Provérbio provado rimado - CMXIV

O Justino é tão cabeçudo 

Que chega a ser irascível 

É tão teimoso sobretudo 

Que o debate é impossível 


Quando ele começa a teimar 

Nem vale a pena discutir 

Apetece apenas comentar 

Ele a dar-lhe e a burra a fugir 



Provérbio familiar - IV

Foi a grande responsável por esta minha paixão por provérbios e expressões idiomáticas. Não foi a única, pois todo o clã parental, tanto o ramo materno como o paterno, usa e abusa de ditos e ditotes, convocando por sua vez memórias da infância mais profunda: é assim que se vai construíndo o património linguístico de uma família, neste caso a minha. 
Mas, dizia, a principal causadora desta minha tendência para gostar de ditados populares foi a minha saudosa avó materna Maria do Carmo. A avó tinha o cabelo curto alvo e era magra com as pernas muito fininhas - uns canivetes, como ela costumava dizer. Não era particularmente terna fora do círculo familiar, pois a sua candura estava toda virada para os seus que defendia com unhas e dentes. Eu era a sua temperamental neta mais nova, mas nunca deixei de ser a Guidinha a quem devotava um amor incondicional. 
A avó teria hoje 102 anos, se ainda vivesse, e continuaria decerto a usar as famosas expressões que só da sua boca escutei. Eram tantas e tão diversas que se torna impossível estar a enumerá-las... 
Como determinado anexim que nunca ouvi a mais ninguém, às vezes ela dizia: Ó filha, faz-te de novas!, locução que me convidava a fazer-me de desentendida ou de parva; frase essa que era acompanhada de um trejeito muito singular e um dedo à frente da boca imitando silêncio. Amiúde dou por mim pensando, face a determinadas situações na minha vida: Guidinha, faz-te de novas! 
Outra expressão de que a avó gostava imenso, e que repetia bastamente a seguir a uma verdade para si evidente, abrindo muito os dois olhinhos que a idade tratara de encolher, era esta:

- É tão verdade como dois e dois serem quatro 

Provérbio provado rimado - CMXIII

Viver é uma contradição 

Velho ninguém quer ser 

Novo ninguém quer morrer 

Mas que grande confusão 


Cada um há-de passar 

O seu mau quarto de hora 

Não seja de grande demora 

É no que deve confiar 


Mas não é só tempestade 

Haverá alegria também 

Que será breve porém 

Assim é toda a felicidade 



quarta-feira, 16 de setembro de 2020

Provérbio provado rimado - CMXII

Vás tu lá para onde vás 

Sempre o cu levas atrás 

Terás de levar o teu contigo 

Sejas rei ou sejas mendigo 


Mais iguais do que pensamos 

Os neurónios todos levamos 

Uns dão mais uso está bem de ver 

Pois tudo querem compreender 


Mas lá no fundo poucas diferenças 

Que interessa haver desavenças? 

Tanta luta e tamanha discórdia 

Para quê tal falta de concórdia? 


Seria mais útil enfim repartir 

E o mal pelas aldeias dividir 

Qualquer um o ditado percebe 

Que é dando que se recebe 



Provérbio provado rimado - CMXI

Não renegues o passado 

Mas deixa-o bem arrumado 

No sítio dele lá atrás 

Longe do que agora se faz 


Bem enterrado e morto 

Onde te traga conforto 

Que não te assalte amiúde 

Ó homem pela tua saúde 


Vive mas é o presente 

Sempre a olhar em frente 

Não deixes nada por fazer 

Com medo do arrepender 


Não temas a imperfeição 

Que tem qualquer acção 

Já sabes que o perfeito 

É o inimigo do feito 



quinta-feira, 10 de setembro de 2020

Provérbio provado num verso branco - XCII

Para quê tamanho cuidado no aspirar o chão 

No limpar o pó dos móveis? 

Quando se deveria sim chupar o pó do ar 

À volta dos nossos pensamentos 

Sugar os cérebros sujos dos outros 

- Que os há cheios de detritos - 

Passar cada sinapse a pente fino? 


Que interessa se há cotão 

Nas solas dos meus sapatos? 

Se me dizem que a poluição visual 

Me está a desarrumar as ideias? 

Desejo que nos corredores da psique 

Se respire um ar puríssimo 

Que a música do meu choro 

Seja igual à da minha primeira respiração 

E o som característico da minha gargalhada 

Se assemelhe ao meu último estertor 



Provérbio provado rimado - CMX

 Olha que água engarrafada 

É cara e não adianta nada 

Pois a aguinha da torneira 

Não dá afinal caganeira 


Desde que seja tratada 

A pessoa fica hidratada 

Diz o povo que água corrente 

Decerto não mata a gente 



Provérbio provado não hasteado

Há algum tempo, a Rosa tinha lido que o remédio para combater o sentimento de depressão era preocupar-se com a aparência. Era um artigo dedicado às leitoras mais jovens, mas nada havia ali que não fosse aplicável a uma mulher de meia-idade, ainda relativamente jovem e com excessiva preocupação em apresentar-se com bom aspecto. 

Recentemente enlutada, em virtude da perda da mãe, deu-lhe para utilizar alguns dos seus objectos de toilette: usava o seu estojo de manicura, limpando e polindo as unhas, polvilhava o corpo rechonchudo com pó de talco com fragrância de jasmim e punha água de colónia nas axilas. 

Retirou do invólucro de plástico da lavandaria os seus melhores vestidos, que ali haviam permanecido estanques para aquelas ocasiões mais importantes que, a bem dizer, jamais apareceriam e pô-los a uso. No entanto, ao ver-se ao espelho verificou que a pressão que sentia quando os vestia se devia ao avantajado engrossamento da cintura. 

Foi o bastante para se desfazer na Rosa o efeito do artigo da revista e deambulou sem destino pela luminosidade daqueles dias, por entre a multidão que parecia ter sempre encontros marcados e lugares para onde ir, reparando que ninguém olhava para ela, ninguém se dignava a virar o pescoço na sua direcção. 


- Rosa caída não volta à haste 

Provérbio provado rimado - CMIX

 Andar de cavalo para burro 

É ir pois de mal a pior

Quando quem vai na sela é casmurro 

E quer ter um custo inferior 


Desce uns degraus de estatuto 

Na pirâmide social 

Mas podia ser mais astuto 

Não precisa ser marginal 


É tentar inverter a tendência 

Para sair lá do buraco 

É necessária resistência 

E não dar nunca parte de fraco 



Provérbio provado rimado - CMVIII

 Há quem só saiba copiar 

E tudo de letra tirar 

Assim é fácil minha gente 

Parece talento permanente 


Porque a originalidade 

Assenta na dificuldade 

É preciso que nasçam ideias 

E não se roubem as alheias 



Provérbio provado rimado - CMVII

 Há quem coma bolo rei à brava 

A outros só lhes calha a fava 

Uns com tanto outros com tão pouco 

Quem diz o contrário é louco 



Provérbio provado rimado - CMVI

A tua vida não é abstémia 

Não passas no teste de alcoolémia 

Começas de manhã a entornar 

Já não vês um palmo ao jantar 


À tua volta é só nevoeiro 

Nem p'rós copos sequer há dinheiro 

Passas o dia a pedir fiado 

Ao taberneiro desconfiado 


Mas em que rica vida tu andas 

Atrapalhado e em bolandas 

Vê lá mas é se atinas de vez 

Ou ninguém te quer por freguês 



Provérbio provado num verso branco - XCI

Tão fácil descarrilar perder-se o rumo 

A bússola de repente sem norte e todos os caminhos 

Possíveis até ideais quiçá perfeitos 

No tempo em que quaisquer surpresas e estímulos 

São passos com vista a possibilidades infinitas 


É esse um tempo em que não desconfiamos ainda 

Da suprema imperfeição da vida 

Em que seguimos irreflectidamente outros viandantes 

A quem baptizamos de companheiros de percurso 

Só tardiamente os topamos mais tresmalhados do que nós 

Perdido é quem atrás do perdido anda 



Provérbio encoberto

Não tinham tido filhos. Durante cerca de dez anos - por motivos profissionais, económicos, de lazer ou apenas e só por um certo egoísmo de parte a parte - evitaram escrupulosamente essa hipótese. 

Mas depois, num Verão particularmente abafado, a Raquel dera para ficar pensativa e ele não conseguira arrancá-la daquele estado quase vegetativo. Fora terrível: durante dias e dias, ela parecia alheia a tudo. Então, certa noite, disse:

- Quero um filho! 

Duarte hesitara um pouco, enquanto ela persistia:

- Precisamos de ter um filho! 

Pararam de evitar a gravidez e desataram a tentar conceber de todas as formas e feitios. Após terem aguardado seis meses e, apesar de tanto treino, nada acontecesse, decidiram consultar um médico. Ambos foram completamente examinados e, no fim, o especialista pediu para conversar a sós com a Raquel. Duarte esperava nervoso do lado de fora do consultório. Quando finalmente ela saiu, olhou-o de um modo estranho. 

- O que tens?, o que é que ele disse? 

- Que não podemos ter filhos. 

- Não podemos? É alguma coisa contigo, querida? 

- Comigo não. O médico disse que és estéril... 

Tal fora um golpe tremendo para Duarte: ferira-o onde o homem é mais sensível. Todas as atenções lisonjeiras que recebera enquanto jovem haviam-lhe exacerbado a vaidade sexual; agora nunca mais voltaria ao normal. 

No caminho para casa sentiu-se envergonhado e permaneceu em silêncio. Até que enfim, com voz rouca, disse:

- Raquel? 

- O que é?

- Não deixes que ninguém saiba disto, ok? 

- Não sejas tolo, Duarte, isto não é motivo para se ter vergonha. Além disso, não é preciso espalhar. 

- Pois, exacto. 

Entretanto, as suas relações foram-se alterando com a descoberta. Riam-se ao pensar no trabalho todo que tinham tido naqueles dez anos para evitar algo que jamais poderia acontecer. Mas na realidade a piada era para Duarte e, por causa disso, era bem duro para ele aceitá-la. 

Por algum tempo, o trauma psicológico permaneceu tão agudo que tinha dificuldade na intimidade com Raquel. Todavia, ela acabou por compreender e aceitar a situação melhor do que o Duarte e foi reconquistando-o ternamente; pouco a pouco, a humilhação desapareceu e as coisas tornaram-se quase como dantes. Não era do feitio de Duarte alimentar velhas feridas e se Raquel ainda conservava o seu desapontamento nunca mais o tinha revelado. 

Para quem os visse de fora, eram um casal normalíssimo e porventura feliz que não tinha tido filhos por opção. 


- Quem está no convento é que sabe o que lá vai dentro 

terça-feira, 8 de setembro de 2020

Provérbio provado melindrado

 O Miguel era muito feliz no casamento, mas às vezes tinha uma grande necessidade de se evadir umas horas do sossego do Lar doce lar quando a mãe da sua Sara lhes invadia os aposentos com o malfadado hábito do chazinho que amiúde se prolongava até ao jantar. 

A Dona Ludovina chegava nas suas vestes negras da recente viuvez, com o passo estugado e olhos de falcão, prescrutadores de qualquer eventual desarmonia entre o casal. Que não existia; não existia até à sua chegada: era precisamente o seu assomar à soleira que deixava o Miguel desconfortável e desejoso de se pôr a andar dali para fora e só regressar quando a Dona Ludovina arrumava o pano da louça e se dispunha a regressar à sua casa dois quarteirões acima para ver a novela da noite. 

Claro que a essa hora a Sara já estava de ouvidos cheios:

- Que necessidade tens tu, Miguel, de ir para a taberna gastar dinheiro em cerveja, quando podias ficar a tomar chá e a conversar comigo e com a minha mãe? 

O Miguel suspirava e recordava o que havia confidenciado, melindrado, ainda há pouquinho a um Joaquim atrás do balcão,  que lhe servia a imperial afogueado:


- Feliz foi Adão que não teve sogra 

Provérbio provado rimado - CMV

 Das tuas promessas estou farta 

Vai p'ró raio que te parta 

Não estou para andar escondida 

Quero ser por ti assumida 


Se de mim terás vergonha 

Como se tivesse peçonha 

Deixa-me então dispensada 

Da tua conversa fiada 



Provérbio provado rimado - CMIV

 Às vezes não tenho ideias 

Para mais histórias contar 

Procuro expressões alheias 

Que me façam logo rimar 


Como os pais fazem aos filhos 

Quando eles imploram por mais 

Eu vou inventando chorrilhos 

De mentiras e outras que tais 


Lábias lérias e patacas 

Se perguntam depois é depois? 

Eu respondo morreram as vacas 

E no fim ficaram os bois 



Provérbio provado rimado - CMIII

 Quando muita pressa se leva 

Costuma o povo dizer 

Que neste século de treva 

Se tem tanto que fazer 


Todos sempre acelerados 

Sem tempo de dar um ai 

A caminho desesperados 

De tirar da forca o pai 



Provérbio provado rimado - CMII

 Pé ante pé chega a Ana 

Assim começa a semana 

É uma sonsa deslavada 

Que morde pela calada 


Com colegas desta laia 

Há que estar de atalaia 

Ninguém de inimigos precisa 

Com a Ana e a Luísa 


Andam juntinhas as duas 

A magicar falcatruas 

Mas quem as ouve falar 

Nem ousa adivinhar 


Que vai naquelas cabeças 

Que belas duas ricas peças 

O melhor é como elas fazer 

E um sorriso amarelo estender 



Provérbio provado rimado - CMI

 O Nuno é um bocado otário 

E também um tanto exagerado 

Costuma fazer tudo ao contrário 

Logo é por todos apontado 


Anda sempre mal amanhado 

Ponta acima ponta abaixo 

Com o cabelo tão desleixado 

E o semblante cabisbaixo 


Foi do padre o sacristão 

Mas foi no Natal despedido 

Quando a meio da oração 

Pôs o dedo no nariz comprido 


O seu mal é gostar da bebida 

De vinho tinto e cerveja 

Ainda lhe hão-de estragar a vida 

Ele tem dos abstémios inveja 


Também gosta de se empazinar 

É um bom garfo o Nuno 

Faz a digestão a arrotar 

Num local inoportuno 


Quando à feira da vila foi 

Deu-se o bom e o bonito 

Conseguiu engolir um boi 

E engasgar-se com um mosquito 



Provérbio provado rimado - CM

 Diz que em equipa que ganha 

Nunca se deve mexer 

Mesmo se em palpos de aranha 

Algum dia vier a perder 


Porque até os melhores 

Também têm um azar 

Quando vestem suas cores 

Podem algures patinar 


Há que ter fé persistir 

Com muito trabalho e ensaio 

Até à exaustão repetir 

Perto de lhes dar o badagaio