«Em criança, ainda antes de
aprender a ler, passava horas na biblioteca da nossa casa, sentado no chão, a
folhear grossas enciclopédias ilustradas, enquanto o meu pai compunha versos
árduos, que depois, muito sensatamente destruía. Mais tarde, já na escola,
refugiava-me nas bibliotecas para fugir às brincadeiras, sempre brutais, com
que os rapazes da minha idade se entretinham. Fui um menino tímido, franzino,
alvo fácil da chacota dos outros. Cresci – cresci até um pouco mais do que é
comum -, ganhei corpo, mas continuei retraído, avesso a aventuras. Trabalhei durante
alguns anos como bibliotecário e creio que fui feliz nessa época. Tenho sido
feliz depois disso, inclusive agora, neste pequeno corpo a que fui condenado,
enquanto acompanho, num ou noutro romance medíocre, a felicidade alheia. Na
grande literatura são raros os amores felizes.(…)»
In O vendedor de passados –
José Eduardo Agualusa
quarta-feira, 22 de janeiro de 2014
terça-feira, 21 de janeiro de 2014
Provérbio citado (SILVA)
«
A minha vida divide-se entre luz e sombra.
Dos vinte aos vinte e nove fui aplaudido
por holofotes em cio, todas as notícias
me queriam conhecer, e em meus braços
decidia-se a beleza ou fealdade das mulheres.
Quinze filmes de sucesso e depois, o desastre:
quatro fracassos consecutivos. O meu rosto,
disseram, passara de moda, ultrapassado
pelas máscaras de gás que atravessaram,
com a guerra, meia Europa, quando o público
desatou a imitar o cinismo dos intelectuais
e a achar ridículo o sensível romantismo
dos meus gestos. Assim se fundiu a minha
auréola, o meu prestígio. Remetido para
as trevas, nunca mais fui perseguido por
fotógrafos, e tudo em meu redor se esvaziou
como um balão abandonado pelo fogo.
No meu funeral, vinte anos depois, nenhuma
apaixonada deu a cara, nenhuma malcasada.
Só então compreendi quão morto estava.
Reflecti, vós que passais, na minha história:
morre duas vezes quem viveu da sua imagem.
»
A minha vida divide-se entre luz e sombra.
Dos vinte aos vinte e nove fui aplaudido
por holofotes em cio, todas as notícias
me queriam conhecer, e em meus braços
decidia-se a beleza ou fealdade das mulheres.
Quinze filmes de sucesso e depois, o desastre:
quatro fracassos consecutivos. O meu rosto,
disseram, passara de moda, ultrapassado
pelas máscaras de gás que atravessaram,
com a guerra, meia Europa, quando o público
desatou a imitar o cinismo dos intelectuais
e a achar ridículo o sensível romantismo
dos meus gestos. Assim se fundiu a minha
auréola, o meu prestígio. Remetido para
as trevas, nunca mais fui perseguido por
fotógrafos, e tudo em meu redor se esvaziou
como um balão abandonado pelo fogo.
No meu funeral, vinte anos depois, nenhuma
apaixonada deu a cara, nenhuma malcasada.
Só então compreendi quão morto estava.
Reflecti, vós que passais, na minha história:
morre duas vezes quem viveu da sua imagem.
»
Vozes apanhadas no chão na igreja
de San Miniato al Monte, nº 2
In Erros individuais – José
Miguel Silva
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