Falando objectivamente, ele nunca lhe disse que gostava dela. Mas a Júlia escancarou as portas do coração e passou a habitar na ilusão de que era correspondida, nunca imaginando que ele não a rejeitava por cortesia. Claro que aquela amizade colorida - oh, expressão tão sem cor! - oferecia a Jorge o melhor de dois mundos: uma amiga que até era inteligente e espirituosa e bebia com avidez tudo o que ele dizia e um sexo relativamente satisfatório sem compromisso e de borla.
Nunca iam jantar fora, a concertos, ao cinema, beber um copo ou sequer passear no parque e o seu convívio era espaçado: uma vez por mês, quando muito duas se alguma das outras amigas com quem o Jorge tinha sexo ocasional se mostrasse indisponível.
A Júlia levava décadas para conseguir estacionar no bairro onde ele vivia e, mal tocava à campaínha, era recebida com um beijo de fugida na face. Uma ou outra vez tentou abraçá-lo, mas ele tão rígido e desconfortável que desistiu constrangida: na sua paixão cega não queria pressioná-lo de nenhuma forma, por isso nunca revelava os seus anseios de um compromisso mais sério, cuidando que acabaria por cortar a desejada meta sem pressas.
O Jorge não dedicava um único instante a preparar a sua chegada: não arrumava a casa que estava sempre num desalinho, não fazia a cama com lençóis lavados nem preparava uma refeição condigna. Limitava-se a encomendar uma pizza, esquecendo-se sempre de que ingredientes ela não gostava. A pizza chegava enfim, sempre morna, quase fria, e comiam-na à mão em poucas dentadas em frente à televisão; a Júlia demorava um pouco mais pois tinha de descascar cada fatia das azeitonas e dos pimentos.
Depois permaneciam pelo sofá numa conversa ensossa durante mais ou menos hora e meia - o tempo de fazer a digestão - e passavam ao quarto onde se despiam mecanicamente, nunca mutuamente. Às vezes, o Jorge estava mais excitado e atacava-a apressadamente no sofá, a palavra era mesmo essa: atacava-a, já que passava duma posição em que estava tranquilamente sentado para, num salto, lhe enfiar desajeitadamente a língua garganta abaixo enquanto a apalpava com sofreguidão. A Júlia não detestava estes arroubos, até porque não gostava de ser sexualmente tratada como porcelana; achava que ele procedia assim por não conseguir adiar um forte desejo.
No acto propriamente dito, ficava às vezes insatisfeita porque ele terminava amiúde demasiado rápido e raramente queria repetir. Júlia não manifestava esta insatisfação, uma vez que lhe era bastante o amor que sentia (segredava de si para si: será mesmo amor isto que sinto?) e pensava que com uma maior intimidade o sexo aumentaria de qualidade e ele derramar-se-ia aos poucos num afecto desmedido.
Uma vez finda a fruição sexual, a Júlia apertava lentamente o soutien enquanto ia procurando as peças de roupa espalhadas aqui e ali. Depois despediam-se com um beijo na boca: Jorge concedia-lhe um beijo mais demorado, quase terno, do qual rapidamente se recompunha. Não se oferecia para a acompanhar ao carro, mesmo sabendo que o bairro não era muito seguro àquela hora da noite; Júlia nunca lhe pedia que fosse, não queria apresentar-se com uma imagem de fragilidade.
O Jorge soprava-lhe então um vamos falando pouco emotivo antes de fechar a porta atrás de si. Mas nunca era ele quem falava: a Júlia aguardava dois ou três dias para resguardar a devida distância de segurança e, após decorrido esse período, mandava-lhe uma mensagem, no dia seguinte outra e no seguinte outra. Ele não respondia ou, ao fim de algumas mensagens da putativa amiga, devolvia-lhe laconicamente uma linha como se estivesse fazendo um favor.
A Júlia não lhe telefonava: no início tinha chegado, em resultado de impulsos algo incontroláveis, a efectuar algumas tentativas sempre infrutíferas, mas acabou por desistir porque não o queria incomodar. O Jorge acabava eventualmente por telefonar - mais tarde que cedo - sem confessar saudade nem desejo, apenas perguntava mal ela atendia: Olá Júlia, queres passar cá em casa?
- Quem cala consente
segunda-feira, 18 de dezembro de 2017
Provérbio provado calado
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