Em breve precisarei de óculos para ver ao perto, pois terei a chamada vista cansada. Com esses óculos enfiaria a linha na agulha, mas já nasci numa época em que mulher que não saiba costurar é socialmente aceite. Também é tolerada se não tiver jeito para a cozinha. Sou filha da revolução. Queriam chamar-me Rui Pedro mas quando nasci ainda não existiam ecografias, tiveram de contentar-se com uma menina. No ano em que terminei a instrução primária o país entrou para a UE. Tenho quase a mesma idade da Festa do Avante. Quando andava no liceu dizia que quando um maço de tabaco e um café custassem 500 escudos deixaria de fumar. Hoje custam o equivalente a 800 escudos e persisto no vício. Começam a desenhar-se-me rugas e finos sulcos no rosto e a pele está a perder o viço. Trabalho mecanicamente:sou menos eficiente que um robot. O que me alivia o duro quotidiano é saber que ao fim do dia posso voltar à posição fetal, esta vida fugaz é o intervalo entre dois sonos.
Entrei nos entas e já não vou para nova. Sou mais nova que ontem e mais velha que amanhã. Morro um pouco mais a cada dia, renasço um pouco mais a cada poente, tenho crises de ansiedade nos equinócios, mas não sinto ainda os calores da menopausa.
Fui lentamente deixando de gostar do dia do meu aniversário, e logo eu que o vivia com tanto entusiasmo! É um dia que parece de novo Ano novo: faço balanços balançando, tenho conversas sérias com o espelho e convido-me para jantar. Claro que nunca vou sozinha, há sempre um maior ou menor grupo de amigos, há sempre membros da família, mas já me aconteceu como se eu sozinha naquele restaurante, dada a melancolia induzida por esse tipo de introspecções subordinadas à efeméride, como se eu sozinha, eu forreta na gorjeta, eu aquela rabujenta que reclama que o bife está mal passado e quando lho trazem de volta o acha demasiado passado.
Digo a minha idade sem falar em números, embora não seja segredo. Hoje ainda há engraxadores na Baixa, há e haverá graxistas circulando nos pequenos feudos que compõem as esferas laborais.
Entrei nos entas e já não vou para nova. Sou mais nova que ontem e mais velha que amanhã. Morro um pouco mais a cada dia, renasço um pouco mais a cada poente, tenho crises de ansiedade nos equinócios, mas não sinto ainda os calores da menopausa.
Fui lentamente deixando de gostar do dia do meu aniversário, e logo eu que o vivia com tanto entusiasmo! É um dia que parece de novo Ano novo: faço balanços balançando, tenho conversas sérias com o espelho e convido-me para jantar. Claro que nunca vou sozinha, há sempre um maior ou menor grupo de amigos, há sempre membros da família, mas já me aconteceu como se eu sozinha naquele restaurante, dada a melancolia induzida por esse tipo de introspecções subordinadas à efeméride, como se eu sozinha, eu forreta na gorjeta, eu aquela rabujenta que reclama que o bife está mal passado e quando lho trazem de volta o acha demasiado passado.
Digo a minha idade sem falar em números, embora não seja segredo. Hoje ainda há engraxadores na Baixa, há e haverá graxistas circulando nos pequenos feudos que compõem as esferas laborais.
Ainda ponho meias solas nos sapatos, mas já não vou ter com o amolador quando vem apitando rua fora: sai mais barato comprar um chapéu de chuva no chinés, mas mais caro à Natureza lidar com tanta poluição de varetas.
À medida que caminho em direcção ao ocaso, recordo com cada vez maior pormenor as madrugadas. Por exemplo, lembro-me bem das tardes passadas na Feira popular, nessa altura ainda não sabia o significado de kitch mas já não gostava de algodão doce: a mais kitch do mundo das guloseimas, principalmente quando é cor de rosa.
Ia também muito ao Zoológico nessa época; regressei lá há muitos anos, já decorridos outros tantos desde a última visita, e pareceu-me o mesmo elefante de serviço à sineta dezasseis horas por dia, aqueles mesmos olhos tristes, aquele mesmo andar muito lento de esperança perdida, o derradeiro sopro de vida a extinguir-se a cada moeda que aceitava transportar na tromba. O pobre!... Eu ao menos posso chegar ao fim do dia, descer dos cabides onde ando pendurada e vestir por algumas horas a minha identidade se a encontrar. As que trabalham no mesmo sítio que eu, parece que lhes devia chamar colegas, dizem-me até amanhã se Deus quiser, e eu sopro para os meus botões: Deus quer!, porque é que não havia de querer lá do alto da sua infinita misericórdia, se eu não faço mal a ninguém a não ser a mim mesma?
Quando posso finalmente esticar a ciática, penso na minha mãe que deixei de poder ver, penso na mãe Natureza que deixei de querer ver e conto milhares de carneiros saltando uma cerca num prado, devo ter visto aquela cerca e aquele prado em algum filme e é sempre a mesma cerca e o mesmo prado, até a sonhar acordada sou monótona! Descansar dá muito trabalho: só de saber que amanhã vai começar tudo outra vez e terei de andar às voltas no periclitante e embriagante carrocel, fico tão angustiada que às vezes até sinto que o diabo me vem esfregar um olho. Durante o expediente, saber que o tempo em contagem decrescente conforta-me: agora só faltam duas horas para ir picar o ponto, agora só falta uma hora para o merecido descanso, agora já cheiro o vento do solstício e dos escapes dos carros.
À medida que caminho em direcção ao ocaso, recordo com cada vez maior pormenor as madrugadas. Por exemplo, lembro-me bem das tardes passadas na Feira popular, nessa altura ainda não sabia o significado de kitch mas já não gostava de algodão doce: a mais kitch do mundo das guloseimas, principalmente quando é cor de rosa.
Ia também muito ao Zoológico nessa época; regressei lá há muitos anos, já decorridos outros tantos desde a última visita, e pareceu-me o mesmo elefante de serviço à sineta dezasseis horas por dia, aqueles mesmos olhos tristes, aquele mesmo andar muito lento de esperança perdida, o derradeiro sopro de vida a extinguir-se a cada moeda que aceitava transportar na tromba. O pobre!... Eu ao menos posso chegar ao fim do dia, descer dos cabides onde ando pendurada e vestir por algumas horas a minha identidade se a encontrar. As que trabalham no mesmo sítio que eu, parece que lhes devia chamar colegas, dizem-me até amanhã se Deus quiser, e eu sopro para os meus botões: Deus quer!, porque é que não havia de querer lá do alto da sua infinita misericórdia, se eu não faço mal a ninguém a não ser a mim mesma?
Quando posso finalmente esticar a ciática, penso na minha mãe que deixei de poder ver, penso na mãe Natureza que deixei de querer ver e conto milhares de carneiros saltando uma cerca num prado, devo ter visto aquela cerca e aquele prado em algum filme e é sempre a mesma cerca e o mesmo prado, até a sonhar acordada sou monótona! Descansar dá muito trabalho: só de saber que amanhã vai começar tudo outra vez e terei de andar às voltas no periclitante e embriagante carrocel, fico tão angustiada que às vezes até sinto que o diabo me vem esfregar um olho. Durante o expediente, saber que o tempo em contagem decrescente conforta-me: agora só faltam duas horas para ir picar o ponto, agora só falta uma hora para o merecido descanso, agora já cheiro o vento do solstício e dos escapes dos carros.
- A esperança do descanso alivia o trabalho
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