Quando a mãe e o pai, Maria e José respectivamente, o foram matricular na escola primária, o processo do filho trazia tantas páginas como as esperanças que nele depositavam e tantas eram as preocupações com a sua adaptação como as páginas em branco onde se escreveria o seu futuro escolar. O dito processo tinha sido analisado, esmifrado e carimbado por uma resma de especialistas de prefixo psi. Depois de muitas trocas e baldrocas, copos meio vazios e pontos de interrogação, a horda de doutas sapiências lá fora capaz de chegar a um diagnóstico pouco consensual: o menino era sobredotado, egomaníaco e mitómano, com laivos de um perfeccionismo doentio.
A Dona Augusta foi a professora que lhe calhou em sorte. Em sorte não!, que o director de departamento deu voltas e voltas à cabeça para arranjar uma sala de aula onde encaixar criança tão sui generis com uns pais tão exigentes. A professora Augusta era tão paciente com os variados degraus de aprendizagem de cada aluno como com as suas teimosias e birras; tinha um largo espectro de tolerância para com os diferentes comportamentos e personalidades, sabendo ser firme quando a ocasião assim o impunha. A coisa ia.
O pior era o recreio. O menino via-se solto e dava largas à imaginação enchendo os ouvidos dos colegas com as suas histórias inverosímeis: que tinha criado o mundo em seis dias e no sétimo tinha descansado, que o dotara de todos os animais, plantas e organismos visíveis e invisíveis, e que moldara um homem do barro e depois uma mulher da costela dele. Um chorrilho de mentiras! As crianças não são tão crédulas como se pensa, percebem bem quando lhes estão a mentir à descarada. E desfaziam-se em queixas à professora.
Veio o fim do primeiro período e com ele a respectiva reunião de pais. E embora tivessem acontecido já muitas conversas paralelas sobre as historietas do recreio, a professora Augusta decidiu ignorar a temática e dedicar-se a tratar do que era realmente importante: o aproveitamento dos alunos. Quando chegou a vez de dirigir a palavra a Maria e José, usou dos seguintes panos quentes a atirar para o morno:
- O vosso filho apresenta algumas dificuldades de concentração na sala de aula, ao tentar ser omnipresente não chega a todo o lado e dispersa-se. É muito seguro de si e está convencido que sabe tudo. E, de facto, atingiu todos os objectivos propostos: sabe organizar o pensamento e exprimir direitinho as suas ideias. Só há um problema: a caligrafia é péssima, ilegível mesmo, e não é capaz de se manter numa linha, escreve tudo torto e fora das margens...
- Deus escreve direito por linhas tortas
sexta-feira, 22 de dezembro de 2017
Provérbio provado sobredotado
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário