O Júlio emigrara para um país estrangeiro; tão longínquo que eram necessários dois dias de viagem para cada lado entre cada lar. Por isso, só visitava a mãe Natal sim Natal não.
Quanto ao Rafael, a mudança não fora tão expressiva, uma coisa de poucos graus de latitude. Não emigrara realmente, mas vivia de tal forma apartado da mãe e das suas necessidades, que a Dona Gertrudes sentia que aqueles vinte minutos que ele percorria para chegar à residência materna lhe eram mais penosos do que o tempo que o irmão passava entre aeroportos.
Por causa disso, evitava telefonar para lhe pedir fosse o que fosse porque sentia que o filho só aparecia por obrigação. O Rafael cumpria o seu papel de filho até onde lho ditava a consciência, com os mínimos de decência e solicitude nas suas raras visitas de médico, tendo presente que a mãe cuidara dele e do irmão em crianças. Na ausência do Júlio, o Rafael diligenciaria para que cuidassem da mãe, quando esse apoio não pudesse mais ser adiado.
Já tinha acontecido aquando da cirurgia. O pós-operatório complicara-se e, naturalmente, a cama de hospital não tinha residente titular e era impossível continuar a recuperação sozinha em casa.
Casa de repouso, era assim que chamavam àquele sítio para onde a levaram de seguida. Era mentira, o local nada tinha de casa nem lá se conseguia descansar, dado o coro constante de queixas e súplicas dos habitantes dementes que ali se limitavam a existir, rogos que de noite se transformavam em uivos.
A Dona Gertrudes ficara dois meses até se restabelecer, ganhar algum peso e recuperar a cor nas faces. Dois meses passados a rezar novenas para que o filho a levasse para fora daquelas paredes que aceleravam a morte.
Não tinha telefonado ao Rafael nenhuma das duas vezes que caíra já em casa. A anca ainda doía, os joelhos também, as costas curvavam-se-lhe, os ombros descaíam, mas essas dores e maleitas eram um segredo bem guardado. Entretanto as funções fisiológicas pareciam cada vez mais não depender da sua vontade, mas esse era mais um segredo, não fosse o filho achar que precisava de ajuda. Ela não queria voltar para aquele sítio nunca mais nem depender de auxílio para viver, isso seria como começar a morrer.
O gato era a sua única companhia. Mas o Zacarias desaparecia como um foguete sempre que a amiga Gertrudes, com os seus gestos trémulos, se aproximava da cafeteira onde aquecia a água para o chá.
- Gato escaldado de água fria tem medo
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