Provérbios Provados noutras casas:

sexta-feira, 22 de maio de 2020

Provérbio provado a seu tempo desvendado

O que vou fazer com todo este tempo livre? - pensou. Dizer tempo livre era como que uma piada, já que não havia liberdade nesse tempo.
Tenho todos estes livros por ler, abri-los-ei um a um a lerei a primeira página de cada: assim decidirei quais as minhas prioridades de leitura, independentemente das opiniões dos críticos, do que já me sugeriram outras leituras, os meus amigos e os leitores dos fóruns que costumo frequentar - considerou.
O problema era que tinha a sua biblioteca pessoal tão criteriosamente organizada que tirava toda a espontaneidade ao acto: a poesia para um lado, o teatro para o outro, os romances nos seus variados géneros, os contos, as crónicas e no fim uma amálgama a que chamava Outros géneros literários onde cabia a literatura que não era capaz de classificar. Quatro grandes estantes espraiadas nisto da ficção. Depois do lado oposto da sala uma só estante, das mesmas dimensões mas mais desorganizada, a da não-ficção, onde se notava uma falta de carinho e de cuidado, mas ainda assim a Psicologia e a Filosofia andavam de mãos dadas, as ciências agrupavam-se e as artes brilhavam ao pé da História.
Que fazer?; desarrumar toda a biblioteca para que não fosse a organização desta um incentivo a nenhuma preferência ou encontrar uma forma aleatória de seleccionar a primeira página do primeiro livro?; fechar os olhos e apontar uma lombada completamente ao calhas? ou contar a sua idade (e naquele momento apercebeu-se que já vivera mais de metade da sua vida) ou o dia do seu aniversário ou o ano do seu nascimento várias vezes? - questionou-se.
Decidiu-se pela primeira opção e, depois de abrir os olhos e ver para que lombada o dedo apontava, pegou no primeiro livro. Com um sopro trémulo, descolou as primeiras folhas e sorveu as primeiras linhas. As palavras transformaram-se em lugares luminosos. Foi como se caminhasse por uma rua da sua cidade, ali encerrado em casa, aninhado como um bicho de contas, redondo e imóvel num longo silêncio. Se calhar a poesia não era a melhor escolha para o tempo de confinamento: punha-se um homem numa tal divagação que só encontrava ainda mais solidão. Como se numa maratona houvesse alguém correndo a seu lado mas na direcção contrária e esse alguém era a sua imagem reflectida no espelho.
Resolveu ir almoçar e deixar os poemas de lado. Fez arroz branco e abriu uma lata de salsichas: refeição frugal a condizer com o seu prato individual à mesa. Um copinho de vinho, porque afinal tanta sobriedade um dó de alma, já basta a maçã cortada aos quartos para sobremesa (haverá lá coisa mais sensaborona que uma maçã crua?).
A seguir ao almoço foi à varanda fumar. Disse boa tarde à vizinha que estendia roupa na varanda contígua. A vizinha desdobrando-se toda em boas vontades, que se ele precisasse de alguma coisa ela teria todo o gosto em providenciar, promessas de mercearias, até de sopa quente ao jantar. A vizinha lastimando-o por o saber em teletrabalho; fora assim que a empresa decidira por hora não fazer despedimentos, vamos ver, vamos ver se isto não dura muito tempo...
Nem lhe soube bem o cigarro, nunca havia trocado mais de um cumprimento forçado com a varanda do lado e, de repente agora, este despropósito, esta entreajuda, quase carnal não fossem os abraços proibidos, quase apostou que se pudesse a vizinha ali mesmo um abracinho varanda afora. Dona Dores, assim descobriu que se chama, onde lhe dói, minha senhora? - pensou, meio divertido meio acabrunhado.
Quando voltou para dentro, hesitou entre ir dormir uma sesta ou continuar a desvendar a biblioteca à procura da leitura perfeita. Deitou-se no sofá da sala, defronte das estantes da literatura e adormeceu fitando as lombadas. Assim que despertou, e sentindo a falta do café que não tomara após o almoço, dirigiu-se à cozinha e reparou que no enorme relógio de parede os ponteiros já marcavam as quatro da tarde. Um dia quase totalmente desperdiçado, bolas!, é esta a poesia do meu quotidiano confinado? - cogitou.
Apressou-se em enfrentar de novo as estantes e, num ápice, fechou os olhos empunhando o indicador. Nem olhou bem o título nem o autor, precipitou-se logo para o miolo, abrindo o livro a meio, subvertendo as regras do seu próprio jogo.
Analisando as poucas linhas que leu (era a história de um escritor fracassado), esta história lembrava-lhe do seu desejo de criança de um dia vir a escrever livros. Nunca o fizera. Talvez lhe faltasse o pêlo dos gatos, o chilreio dos pássaros ou saber o nome das espécies arbóreas: o escritor deve saber tanto de Botânica como da segunda lei da Termodinâmica. Fora apenas informático mas, repare-se!, um bom e meticuloso informático - repetia de si para si. Na empresa, porém, quase ninguém sabia do seu desejo de menino e limitava-se a escrever códigos binários.
Noutro dia, vira por acaso um concurso que premiaria com mil euros (que jeito lhe dariam agora mil euros!) quem escrevesse um conto de dez páginas sobre a quarentena. Sorriu: se conseguisse, tal como o protagonista do livro, escrever duas páginas já era muito! Além disso sobre o que escreveria?, sobre a biblioteca que queria desvendar, a poesia insípida do seu quotidiano ou a vizinha das Dores a precisar de um abracinho? - e adormeceu de novo no sofá, sem ter jantado, com a televisão ligada num programa de culinária.

- Atrás de tempo, tempo vem

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