Lá mais para a frente haveria de vir uma moda muito pós-revolucionária de pôr nomes mais curtos e simples às crianças. Mas naquela época, mal os bebés abriam a goela com o primeiro choro, logo lhes pespegavam um nome clássico e no mínimo trissilábico, que depois se tornava ainda maior com o respectivo formato diminutivo.
Era esse o caso do Armandinho. Haveria de ser o Armandinho até à puberdade, quando se começou a dar ares de Armando por ter precoces os pêlos do buço e a voz atestada de testosterona. Quando por ele chamavam Ó Armando!, logo vinha o ditote: umas vezes a pé, outras andando. O jovem exasperava-se, mas bendizia não lhe terem posto Alfredo como ao melhor amigo, que inevitavelmente tinha um cú de meter medo e, como era muito bem disposto, nunca se zangava com as piadas sobre o seu traseiro, antes baixava as calças expondo-o ao vento e rindo-se muito, desde que não houvesse nenhuma senhora presente.
Os dois amigos eram inseparáveis e, uma vez terminada a escolaridade obrigatória, dedicaram-se a contribuir para o sustento familiar. Mais certo seria dizer a escolaridade possível: por sorte lá na aldeia até havia uma escola e muita criançada para encher os bancos da sala onde conviviam as quatro classes. Depois de realizado o exame da quarta classe, continuar os estudos só mesmo na longínqua vila, por isso os dois jovens sabiam de antemão que mais estudos só chegariam em concumitância com o serviço militar. Tanto um como o outro tinham famílias numerosas onde a todos cabiam as suas tarefas. Para as irmãs mais espigadotas sobrava o árduo trabalho de casa: arejar, limpar e lavar, além de coser e cozer, enquanto iam tomando conta dos irmãos mais novos numa antecipação do futuro papel de mães.
As ocupações dos rapazes eram todas elas fora de portas, dedicando-se mormente a apascentar gado e recolher lenha. E se muito davam às pernas por aqueles carreiros serranos com os sapatos esburacados, a canseira não era tão digna de monta como à primeira vista poderia parecer: as cabras, a bem dizer, guardavam-se sozinhas, conhecedoras das ervas mais tenras por onde enfileiravam os cascos e faro caprino, seguindo as estraditas de caganitas da véspera. Andar à cata de lenha era porém mais moroso, pois esta nunca era suficiente em casa: a preparação das refeições consumia muitos toros e, além disso, era necessário manter sempre viva a lareira para fazer face ao frio daquelas altitudes. Havia que ter bom olho na recolha dos vários tamanhos possíveis de paus já que, se se limitassem a escolher troncos grossos e compridos, perderiam depois algumas horas a rachar lenha, tarefa, essa sim, passível de pôr um homem a suar em bica.
Para transportar toda essa lenha levavam cada qual o seu burro; à época, os tractores mal tinham começado a cuspir poluição no auxílio que mais tarde emprestariam à agricultura, e naquelas terras pedregosas nem sequer caberiam nas estreitas passagens por onde pastavam as cabras tilintando os seus chocalhos. Uns sons mais fechados e graves, outros mais agudos que correspondiam aos badalos mais pequenos, era esse todo o barulho que interrompia as sestas transgressoras dos dois amigos. Mentira, não era o único: às vezes os burros largavam a zurrar num concerto interminável, instigados por sabe-se lá que misteriosa atrabile. E por mais que os tentassem fazer calar, nada feito: primeiro começava por berrar o do Armando, umas vezes a pé outras andando; quando este muar se calava, logo respondia o do Alfredo no seu cú de meter medo. Ficavam horas naquilo, à vez, até se fartarem, mas nunca em uníssono.
- Quando um burro fala, o outro abaixa as orelhas
quinta-feira, 30 de novembro de 2017
Provérbio asinino - II
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