Henriqueta estava habituada a pensar-se até ao osso: raramente faltava à psicoterapia semanal que fazia há mais de metade da sua sofrida vida. A médica não era a vulgar psicóloga apagada e monocórdica, de vez em quando erguia a voz e dizia-lhe umas verdades custosas de escutar. Que, a título de exemplo, nunca cortara devidamente o cordão umbilical ou que havia ficado presa na fase fálica, o terceiro estádio freudiano.
Era um tema recorrente das consultas. Temia - e antecipadamente tremia - o dia em que perderia os pais: era o seu maior medo; imaginava que ver partir um filho pudesse ser uma dor muito maior, muito mais temível e terrível, mas, como já perdera o comboio da maternidade e os pais envelheciam a olhos vistos, esse medo ia engordando, o estupor.
A médica lá lhe ia explicando ser essa a lei da vida e que não valia a pena sofrer por antecipação, pois os pais não partiriam ao mesmo tempo e seria necessário ficar a cuidar da viúva ou viúvo que vivesse mais tempo, já que a Henriqueta não tinha irmãos e a restante família vivia longe. Mas a doente tinha uma propensão tal para o padecimento - e, diga-se, até um certo fascínio pela autocomiseração - que ficava naquela ladainha enquanto durava a hora da consulta. A doutora bem queria abordar outros temas mais prementes, como por exemplo a sua sexualidade fechada a sete chaves, tema que teimava em evitar obstinadamente, mas a Henriqueta virava o ponteiro para a morte dos progenitores e dali não arredava pé.
Até que um dia em que estava com menos paciência, e já fartinha do mesmo assunto que não a deixava progredir com vista a presumíveis melhoras, a psicóloga respirou fundo e disse-lhe: Olha, Henriqueta (sim, porque tantos anos de consultas já tinham inaugurado o tratamento na segunda pessoa), vamos ficar por aqui hoje, pois não estamos a chegar a lado nenhum! E sabes o que te digo? É o teu trabalho para casa hoje, vais pensar bem nisto que te vou dizer:
- Goza a vida que não a levarás contigo
domingo, 12 de abril de 2020
Provérbio provado psicanalisado
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário